Grande homenageada do Festival Vida & Arte, Elza Soares fala sobre o show A Voz e a Máquina, o qual assume como um espetáculo de “conquistas, gritos e cobranças”. Aos 87 anos, discute política, racismo e garante: “Deus é mulher”

Elza Soares (Foto: Daryan Dornelles)

Elza Soares sempre foi mulher à frente do seu tempo. Dona de voz e energia brutais, sabe que é preciso cantar para se impôr. Conhece também seu lugar no mundo. Aos 87 anos, viaja o globo levando seu grito de força e feminismo, mostrando que é sempre tempo de se reinventar. Depois do aclamado A Mulher do Fim do Mundo (2015), seu renascimento na música, Elza lança Deus é mulher. Um disco que, se não é um manifesto feminista, é o mais combativo de sua carreira.

Atração confirmada no Festival Vida & Arte 2018, ela traz o show A Voz e a Máquina, que faz desde 2016 e ganha novo fôlego a cada ano. À sua maneira, combina samba e música eletrônica. No repertório, releitura de canções atemporais de Cazuza, Luiz Melodia e Criolo, além de clássicos como “A Carne” e “Opinião”. Em entrevista ao O POVO, Elza discute política, racismo, fala da sua relação com Deus e assume o show como um necessário “tapa na cara”. A carioca comenta sua relação com Fortaleza e fala da sensação de voltar ao festival após 15 anos.

O show A Voz e a Máquina já vem rodando o Brasil, mas passou por reformulações. Como é o show que você vai trazer para Fortaleza?

O show tá lindo, cara, e foi para fora do Brasil também. É um show de conquistas, gritos, de cobranças. É um show político e brasileiro. A gente fala, mostra isso. É um show forte.

É uma mistura de repertório seu com músicas de outros artistas. Entra na fase A mulher do fim do mundo e no disco Deus é mulher?

Deus é mulher, não! A mulher do fim do mundo, sim, abordo muito no show. E entram músicas de outros artistas que eu transporto tudo para mim, cara. Eu pego essas músicas com todo respeito a esses artistas e faço a minha interpretação. É a minha cara.

No palco, você é acompanhada por músicos da cena eletrônica e um guitarrista.

A música eletrônica tá comigo há muito tempo. No Do Cóccix Até O Pescoço (2002) eu já cantava música eletrônica. Depois veio o Vivo Feliz (2003) que é só eletrônico.

Você interpreta “Não Recomendado”, do Caio Prado. O que essa escolha diz sobre o show?

É uma música que fala tudo, e nós teremos isso representado no telão (com mapping e projeções). É um tapa na cara. E não só na minha cara. É um tapa na cara preta, um tapa na sociedade. Fala do não. O não na cara da mulher, um não infeliz.

Então, você tem acompanhado esse momento da música brasileira de grito das minorias.

Vou te dizer uma coisa, Rubens. Na verdade, a música brasileira é que me acompanha. E me acompanha porque a minha vida inteira eu venho buscando isso. Na época do disco Do Cóccix Até O Pescoço fui eu quem busquei isso e trouxe pra música. Ninguém trouxe isso e Do Cóccix Até O Pescoço abriu um caminho.

Reflete sua resistência.

Eu sou a própria resistência. Sou a resistência em pessoa porque a minha busca no trabalho não é de agora, não é modismo. Busco isso desde quando comecei a cantar. Antes de cantar eu já buscava esse grito de liberdade, para poder falar. No Deus é mulher eu falo que meu País é meu lugar de fala.

(Foto: Patrícia Lino / Divulgação)

Você consegue explicar sua natureza forte, essa aura punk?

Não consigo explicar. É uma Elza muito livre, né?

Você continua os debates de A Mulher do Fim do Mundo em seu novo disco?

A gente tá vivendo um momento da conquista das mulheres, entendeu? A gente vem buscando isso há tanto tempo. Esse momento de conquista, respeito, dignidade. Agora a gente tá vivendo isso. Era tabu, e agora a coisa ficou muito mais clara e Deus é mulher tem muito a ver com esse momento, essa abertura. Esse “deixa eu falar, deixa eu passar”. Deus é mulher é isso.

Mas ainda é preciso pedir para se expressar?

A licença já foi dada. As portas estão abertas, abriram as cortinas. Agora é assim: “Com licença, mas já passei”!

E como surgiu a relação com esse Deus feminino?

Desde que eu era criança, com meus sofrimentos, com minha família negra sofrida, eu já pedia para Deus ser mulher. Eu falava: “Deus é mãe!” Porque se ele é pai de todos, cadê a mãe? Fica aonde? A minha relação com Deus sempre foi muito de questionar onde ele estaria. Sempre foi uma relação de: “Cadê a minha mãe? Quero colo”.

Sua luta pelo espaço da mulher é um reflexo disso?

Eu sempre digo que não sou moda. Eu não sou modismo. Eu sou a própria força da natureza, e estou sendo isso a minha vida toda. Não é de agora. Venho de uma época de chibata, em que o negro servia de banco para o branco sentar.

Você sempre foi moderna. O conservadorismo interferiu de alguma forma na sua postura?

Nunca deixei nada interferir na minha postura, nada interferir na minha maneira de ser mulher.

Você tem acompanhado o que acontece na política nacional?

Completamente. A gente tá vivendo um momento de muito ódio, rancor, tortura. De coisas tristes. Se Deus é mulher, tem que libertar isso tudo. Mas só o povo é que pode mudar isso. Nós. Tem que deixar de ter essa vida de gado, pelo amor de Deus. Tem que deixar disso. É preciso combater tudo.

A representação feminina no Congresso é pequena. Por que você acha que ainda é tão difícil levar representatividade para esses espaços?

É aquele mundo do senhorzinho, né? De capitão. De baixar a cabeça, botar o joelho no chão e fazer o que mandam. É por isso que é difícil. E também porque as pessoas têm medo. Vai fazer o que? Vai pra onde? As pessoas não conhecem o caminho. É uma encruzilhada. A voz do povo é a voz de Deus, e o povo tá muito calado.

Nos créditos do seu repertório existe mais presença feminina do que antes. Foi uma decisão sua trabalhar com mais mulheres?

Lógico! Eu não sei o que é o reconhecimento. Isso é tão meu, tão Elza. Eu estou tirando o esparadrapo das feridas, estou tirando. Eu sou isso tudo! É o meu momento de começar a me livrar dos esparadrapos.

Você lançou “Banho”, escrita pela Tulipa Ruiz, como primeiro single do Deus é mulher. Você enxerga referências suas nas compositoras que escolhe?

Ela é uma maravilha. Tem uma música da Mariá Portugal também que é “Um olho aberto”. Fala sobre a natureza. São meninas novas que estão aí vivendo coisas boas. Eu não sei, mas tem sim. Meu grito tem ecos, tem tido retorno. As meninas vêm no caminho da Elza, que é um caminho muito bom, aberto. Não sei nem explicar o que sinto porque é tão verdadeiro, tão pele. Tem a Pitty, com quem gravei “Na pele”. Ela é uma mulher que também tá integrada.

(Foto: Divulgação)

Seu discurso político é muito afiado. Deus é mulher é um disco mais combativo?

Há tempos meu discurso é assim. É meu isso. Eu acho um disco bem combativo. A gente queria um trabalho claro, solar. Que vc pudesse mostrar os dentes, sorrir, não fechar a boca. Vamos abrir os ombros, os peitos. É um momento difícil para o povo brasileiro. Pelo amor de Deus, precisamos abrir os peitos e gritar pela liberdade, se libertar. Ainda é preciso.

Qual a importância desse discurso combativo na sua arte?

É importante para a humanidade, para todos nós. As pessoas dizem que o mundo tá cruel, que tem que mudar. Mas o mundo não tá cruel. Nós fazemos isso! Tem muito ódio, muito rancor. É preciso tirar esse peso, esse rancor todo. Tá na hora da gente se libertar dessa coisa tão feia.

Você se apresentou na primeira edição do Festival Vida & Arte, em 2003, e agora volta como homenageada. Qual a sensação?

Enorme! É uma sensação de alegria, felicidade, de muito obrigada, me entendeu? Meu Deus.

E qual sua relação com Fortaleza?

Sempre vivi muito por aí. Esse é o verdadeiro povo brasileiro, meu bem. Aí tá o Brasil. Aí é a casa do Brasil. Porque a gente sabe de onde vem as angústias, as torturas. A gente sabe do sofrimento. Fortaleza é a cara do Brasil.

Você não parou de fazer show. Como foi gravar o disco?

Esse álbum Deus é mulher fiz em 10 dias. Uma coisa muita brava, né? Bravura. E viajando muito, no Carnaval, cara. Você nem imagina a rotina. Avião é estúdio. Já tô acostumada com isso, mas agora tô vivendo um momento muito feliz com os meninos que me acompanham (o empresário Juliano Almeida, o assessor Pedro Loureiro e o maquiador Wesley Pachu). As três crianças maravilhosas que me acompanham e me dão alegria de viver. São uma fortaleza ao meu lado. Eu precisava disso.

Na sua vida, você sentiu falta desse apoio?

Senti. Foi um apoio que faltou na minha carreira. Sempre fui muito ludibriada, muito inocente. Já fui muito enganada. Mas agora tenho a minha santíssima trindade (risos).

Como está sua coluna?

Aqui guardadinha, com muita fisioterapia. Se não mexeu na voz, deixa a coluna onde tá.

O que a Elza pensa sobre esse momento de streaming?

Esse momento é arrepiante, né? E eu consumo também, lógico. Escuto tanta coisa. Estudo muito assim, buscando as coisas que eu posso falar, que eu posso gritar. Na minha época só tinha rádio e eu gritava. Às vezes, era difícil o grito correr, mas hoje a gente tem essa abertura. Você grita aqui e do outro lado do mundo eles escutam. O eco tá saindo. Gritei lá atrás e o eco tá saindo agora.

O que você mais quer falar nesse momento?

Só posso dizer para você uma coisa: Deus é mulher!

Elza, e agora que encerramos, o que vc quer fazer?

Eu quero te dar um beijo!

Serviço

Show A Voz e a Máquina, com Elza Soares
Quando: Dia 22 de junho
Onde: Festival Vida & Arte (Centro de Eventos do Ceará, na av. Washington Soares, 999 – Edson Queiroz)

Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia)

(Entrevista publicada no caderno especial do Festival Vida & Arte, no jornal O POVO, nesta quarta-feira, 6)

About the Author

Rubens Rodrigues

Jornalista. Na equipe do O POVO desde 2015. Em 2018, criou o podcast Fora da Ordem e integrou as equipes que venceram o Prêmio Gandhi de Comunicação e o Prêmio CDL de Comunicação. Em 2019, assinou a organização da antologia "Relicário". Estudou Comunicação em Música na OnStage Lab (SP) e é pós-graduando em Jornalismo Digital pela Estácio de Sá.

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