Don L (Foto: Divulgação)

Don L tem consciência plena da efemeridade do tempo. Nascido Gabriel Linhares da Rocha, 37, filho de cearenses é um dos fundadores do Costa a Costa, importante grupo no cenário hip hop alencarino dos anos 2000, mas demorou a ver o próprio nome decolar.

O primeiro álbum solo, Roteiro pra Aïnouz, Vol. 3 (2017), só veio 15 anos depois de entrar no rap, abrindo uma trilogia reversa autobiográfica inspirada no cinema de Karim Aïnouz (diretor de “Praia do Futuro”, “O Céu de Suely” e “Abismo Prateado”).

Único cearense na programação da 3ª edição do Favela Sounds – Festival Internacional de Cultura de Periferia, em Brasília, onde se apresenta neste sábado, 24, Don L agora se prepara para contar a segunda parte da sua história em Roteiro pra Aïnouz, Vol. 2, disco que vai narrar sua chegada em São Paulo, há cinco anos.

Em entrevista exclusiva ao Blog, o artista fala sobre sua produção artística, a relação com obra de Aïnouz, a necessidade de se posicionar politicamente e projeta uma nova era de resistência no governo Bolsonaro. Don L também adianta quando e como será sua próxima passagem por Fortaleza.

Para ler ouvindo: Roteiro pra Aïnouz, Vol. 3

Você nasceu em Brasília e cresceu em Fortaleza. Hoje vive em São Paulo. O que você guarda do Ceará?

Nasci em Brasília e fui pra Fortaleza ainda criança. Morei um pouco em São Luís. Sou de Fortaleza mesmo, minha família é do interior do Ceará. Cresci em Fortaleza. Só vim pra São Paulo agora depois dos 30 anos. Eu guardo de Fortaleza a minha essência completa. Sou essencialmente isso. É uma coisa mais difícil da gente mesmo perceber porque tá enraizado. Acho que talvez eu não saiba dizer o mais essencial, saca?

Acho que Fortaleza tem essa coisa assim de, além de ser uma cidade que te mostra grandes possibilidades, você sempre esbarra um pouco na realidade dura. É uma cidade que está num estado teoricamente muito pobre, de muita dureza. Tem uma dureza de estar sempre com a escassez na cabeça. Parece que isso não sai. Mesmo que você esteja bem, mesmo que você escape disso, muita gente que você ama e conhece continua nessa realidade. E tem a coisa do mar, da praia, da nossa facilidade de rir das coisas, de rir da nossa própria miséria ao mesmo tempo.

Roteiro Pra Aïnouz vol.3 é o primeiro álbum solo de Don L

Você tem uma extensa vivência no rap antes do Roteiro Pra Aïnouz vol.3, inclusive em Fortaleza com o grupo Costa a Costa. Como é a experiência de lançar um primeiro disco solo depois desse caminho traçado?

É o meu primeiro disco, mas no rap a gente tem um bagulho que a gente chama de mixtape. O hip hop é um bagulho que eu acho muito foda porque a gente tá sempre reinventando o significado das coisas e a mixtape é uma delas, que passou a servir como um disco demo. Em 2007 (quando o Costa a Costa lançou a mixtape Dinheiro, sexo, drogas e violência), eu já tinha alguns anos de rap. Comecei em 2002. É deprimente contar os anos porque passa tanto tempo e você não consegue realizar metade do que gostaria com melhores condições. Você quer que o que tá na sua cabeça se materialize e nem sempre isso é fácil de se fazer.

Por outro lado, tem a vivência. Com o tempo, a gente aprende a fazer melhor e se preocupa mais com o que o impacto que o que você diz tem na vida das pessoas. Sempre fiz música para mim mesmo, mas não no sentido egoísta. E sim de ser o que eu preciso pra continuar vivendo. A vivência é o essencial da música. Se eu tivesse lançado um disco solo mais jovem, teria outra vivência. Agora, eu conto uma história que vem de muitos anos até agora. Tem músicas prontas que eu nunca lancei e vou refazer com uma visão mais madura. Então tem esse lado positivo.

Como surgiu esse conceito de trilogia reversa para seus discos?

Eu tinha essa ideia de fazer uma trilogia, de contar essa história como um roteiro de filme. Sempre me disseram que as minhas músicas são visuais. As pessoas falavam que, quando eu rimo, elas conseguem ver as imagens. Eu componho com imagens na minha cabeça, e pra realizar é aquele bagulho caro. Eu sempre fiz isso de tentar fazer as pessoas verem e sentir com a música. Tive a ideia de contar a minha história, e quero que seja assim em reverso. Não é uma história usual, não é um clichê.

E a relação com Karim Aïnouz?

Quando fui dar um título, eu já tinha essa rima que eu digo que a minha vida tá mais pra um filme de Aïnouz (na música “Se Num For Demais”) do que para roteiros hollywoodianos espetaculares. Essa coisa de você estar sempre em uma busca tem nos filmes do Aïnouz, em que a busca interior é a principal. Isso tá em todos os filmes dele que eu vi. O êxodo, mesmo quando não é físico, tá lá. Até mesmo em “Madame Satã” (2002), que não fala de êxodo, as questões pessoais do cara estão lá. Essa alusão de prestigiar as influências tá na cultura hip hop. E faço isso porque a gente não é educado a se preparar para uma obra de arte. Então, foi tudo isso junto de querer mostrar e ter a ver com a essência do trabalho.

Então você gosta de cinema?

Eu pretendo ser um cara mais ligado em cinema, mas nem sou tanto. É mais a forma de como eu componho as músicas, uma ambição de querer fazer coisas integradas. Quando lancei a mixtape Caro Vapor (2013) fiz de um jeito que todo mundo hoje faz. No disco novo do Baco (Exu do Blues, Bluesman, 2018) cada música tem uma foto. Eu inventei esse bagulho e acho massa que todo mundo faz isso agora. Sempre quis trabalhar com fotógrafos fodas pra dar imagem ao que seria a música. Assim como tinha a ambição de trabalhar com dança, como fiz o clipe de “Laje das Ilusões” com dançarinas. E o cinema é foda, né cara? É uma forma de arte muito rica. Fala muito, faz você sentir muito por um período muito rápido. Assistir a um filme do Aïnouz no cinema é uma experiência sem distrações, você é obrigado a sentir.

O álbum é repleto de parcerias. Tem o Diomedes Chinaski, Leo Justi, o próprio Fernando Catatau, entre outros. E hoje em dia fazer colaborações está em alta. Essa lógica já era do rap?

São duas coisas. Primeiro, nós temos essa cultura, vem do berço do hip hop. A outra coisa é ter um compromisso de trazer gente nova e também gente que tem a ver com a sua história, com o lugar de onde você veio. Quando coloquei o Diomedes na intro do meu disco, ele ainda não era conhecido e ainda não tinha lançado “Sulicídio“. Por ironia do destino, “Sulicídio” saiu antes, todo mundo ouviu e quando lancei meu disco foi uma avalanche. Eu coloquei o Diomedes pra mostrar que tem esse cara de Recife, um dos melhores do Brasil. E tem tudo a ver com a história que eu conto no disco. Não quero que o Diomedes demore 15 anos como eu demorei.

Catatau é um cara que eu sou muito fã desde moleque. É um dos melhores guitarristas do mundo. Ele é insano! Coloquei o Thiago França que é tipo o Catatau do sax. Quando gravei “Cocainterlúdio” fiquei impressionado com a capacidade do maluco de chegar no estúdio e fazer tudo em um take. Ele é muito virtuoso. Tem a Lay (na faixa “Mexe pra Cam”) que é uma mina que também precisa ser mais reconhecida. Agregar é a essência do hip hop, além de chegar no público desses artistas.

Você é ativo no Twitter e comenta o cenário político. Nesses últimos meses, na discussão acalorada do período eleitoral, chegou a dizer que “não perdoaria” rappers que não se posicionavam contra o presidente eleito Jair Bolsonaro. Por que essa decisão? O rap é sempre político?

O rap é político. Não tem como não ser. O cara fala de droga, balada e mina, mas tudo tem contexto. Há quem veja o rap como embalagem e tente esvaziá-lo, mas todo estilo de música chega nesse momento de esvaziamento. A indústria é parte disso e o rap é o que mais resiste. Ninguém consegue esvaziar o hip hop. Chega o Emicida, o Mano Brown e, de repente, ressurge a origem do Marcelo D2. Se você pensava que o D2 falava só de maconha, onde você tava?

Então, chega em um momento desse e quem não tá se posicionando tá sendo estúpido porque vai sofrer com isso também. Em Fortaleza tinha um grupo chamado Conexão Racial e uma vez eles saíram do palco algemados porque falavam da polícia na música. É um dos grupos pioneiros do rap em Fortaleza. Foram eles que começaram o bagulho. E isso durante os anos 90. O que falei foi nesse sentido de ver quem estava pela cultura.

Você acredita que a necessidade de se posicionar se intensificou nessas eleições?

Agora é mais importante ainda se posicionar. Se tornou vital. Se a gente não se posicionar, vamos aceitar uma hegemonia de um cara extremamente truculento. E com métodos novos de truculência que as pessoas comuns não estão preparadas para lidar. Essa coisa da pós-verdade, a fake news em pessoa usando todo mundo de fake news. Fascistas não sabem coisa nenhuma porque nunca estudaram e estão se colocando como intelectuais. É um bagulho perigoso a ponto de ameaçar a produção de conhecimento de um País inteiro.

Nesse contexto, os artistas vão precisar se articular melhor para resistir a essa hegemonia que você citou?

Já existe união quando o assunto é política. A gente precisa sair só da arte. Já foi construída uma narrativa de artista e Lei Rouanet, de pessoas que teoricamente se dão bem em um governo de esquerda. Essa articulação das artes já é uma obrigação, é natural. É o mínimo se posicionar contra os absurdos do pseudo intelectualismo. Para além disso, a gente precisa agora ver formas de trabalhar a resistência por fora da arte. Precisamos nos preparar para esse governo com juízes, advogados e gente que tem poder financeiro. Eu me inspiro muito no que os pretos americanos fizeram. Teve os Panteras Negras, mesmo o que os muçulmanos negros fizeram. Eles eram uma minoria, mas se articularam de forma que conseguiram se proteger e gerar coisas que estão dando frutos até hoje. É o que falta no Brasil.

(Foto: Larissa Zaidan)

O que você anda ouvindo?

Eu tô ouvindo pouca música no momento porque tô numa fase de transição. Tem um disco que tô ouvindo mas não saiu ainda que é o do Gallo, de Fortaleza. A gente tá tentando lançar esse ano ainda. É um disco muito bonito que eu tô ouvindo pra vida mesmo. É um disco para a vida.

Fase de transição?

Eu tô mudando de bairro agora, vivendo esse looping.

Que looping?

Você trabalha pra mudar de vida, pra justificar seu êxodo, construir uma vida e nem sempre o mundo te acompanha nisso. Você passou a vida inteira lutando pra construir sua paz e, quando consegue, tá acontecendo uma guerra. Eu tava me preparando pra fazer um disco mais leve, mais boa vida e que também é sobre um cara que passou a vida inteira lutando. E, de repente, o mundo desaba. A gente não pode deixar isso acabar com a vontade de viver. Estamos vivendo um momento tenso. Por mais que a gente busque vencer na vida, as soluções individuais são só individuais. E se o bagulho piorar, impacta sua vida.

Você já está trabalhando no próximo disco?

Sim. E esse disco é bem isso, né? Na verdade, é sobre o que aconteceu quando cheguei em São Paulo. É a história que vou contar no RPA2 (Roteiro Pra Aïnouz vol.2). Esse bagulho em looping. A história de repete, e há uma luta interna e uma luta externa.

Quando você volta a Fortaleza?

Não tenho show marcado em Fortaleza. Eu tô com saudade de cantar em Fortaleza e passar uns dias. Pretendo ver se passo uns dias aí no fim do ano. Até porque a gente vai lançar o disco do Gallo. Vamos fazer clipe, ver o que a molecada tá fazendo aí. Quero estar mais próximo.

(Foto: Reprodução/Facebook)

About the Author

Rubens Rodrigues

Jornalista. Na equipe do O POVO desde 2015. Em 2018, criou o podcast Fora da Ordem e integrou as equipes que venceram o Prêmio Gandhi de Comunicação e o Prêmio CDL de Comunicação. Em 2019, assinou a organização da antologia "Relicário". Estudou Comunicação em Música na OnStage Lab (SP) e é pós-graduando em Jornalismo Digital pela Estácio de Sá.

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