Jonnata Doll e Os Garotos Solventes (Foto: Marcelo Mudou)

As histórias da vivência de Jonnata Doll & Os Garotos Solventes em São Paulo, onde vivem há mais de meia década, são contadas em Alienígena, terceiro álbum da banda cearense. Nesta quarta-feira, 2, eles tocam o repertório novo no Festival Muriçoca, em Sobral (na Margem Esquerda Do Rio Acaraú), depois de levar para o palco do Cineteatro São Luiz. O evento é gratuito.

Com 10 faixas, o álbum foi produzido por Fernando Catatau (Cidadão Instigado) e traz participações de Ava Rocha, Marcelle, Clemente, Guizado e Murilo Sá, além do próprio Catatau. Os convidados aparecem cantando ou tocando, mas sempre criando, como defende Jonnata Doll.

Em entrevista ao blog Fora da Ordem, que pode ser ouvida na íntegra no podcast FDO desta semana, ele conta as histórias que inspiraram o novo álbum, revela que escreveu uma das músicas sob encomenda para a cantora e compositora Céu e fala sobre o vício em morfina.

Faixa a faixa: Alienígena (2019) – Jonnata Doll e os Garotos Solventes
Por Jonnata Doll

(Foto: Marcelo Mudou)

Matou a Mãe (Jonnata Doll)

“É sobre a sociedade patriarcal, capitalismo. Mais sobre esse lugar que tava sendo questionado. Lembro que eu ficava em algumas mesas com gente que eu admirava falando: “Ah, não posso mais falar mulata, não posso mais fazer piada, que chatice”. E a galera quer se sentir à vontade pra continuar sendo opressora, sabe? Não quer se livrar de velhos hábitos. Acho que isso que colocou um presidente tiozão no poder. A música fala sobre uma tentativa de calar o feminino.”

Edifício Joelma (Jonnata Doll / Edson Van Gogh)

“Fala da minha vivência andando no Centro de São Paulo. Conta coisas que aconteceram comigo. Por exemplo, aqui no Ceará, adoro andar de chinela na rua. São Paulo não rola. As pessoas olham pra você, acham estranho. Depois descobri que é porque a cidade é muito suja, mas no começo achava que era só preconceito. A galera pisava no meu pé”.

“E aí também morei em frente ao Edifício Joelma, onde teve o incêndio. O refrão da música fala sobre o backdoor man decante que vai pular da janela e cai. É a falência desse modelo de homem, mais uma vez aparecendo no refrão. O começo da letra, me inspirei numa parte d’A República do Platão. Tem um personagem mais velho em uma festa e perguntam pra ele sobre a velhice. Ele disse que ser velho é muito bom porque os cavalos da emoção afrouxam as rédeas. É uma música bem pós-punk mesmo. Tem gente que acha parecido com Bauhaus, Legião”.

Localizado no Vale do Anhangabaú, o edifício Joelma pegou fogo após curto-circuito, em fevereiro de 1974. 187 pessoas morreram. (Foto: Reprodução)

Baby (Jonnata Doll)

“Baby é uma música mais romântica, mas ela faz referência a quando eu tava muito bad em São Paulo. Sem lugar pra morar, sem saber se conseguiria ficar lá. Eu ficava imaginando tendo outra vida com a pessoa que eu amava, minha namorada, no Centro, conseguindo me manter como artista. Uma espécie de utopia”.

Trabalho Trabalho Trabalho (Jonnata Doll)

“Nasceu quando peguei um livro de um autor paulista. Um livro muito ruim, em primeira pessoa, fazendo tudo aquilo que eu tava evitando no Alienígena. Que é falar só de si. Pra ser interessante, pras pessoas se identificarem, tem que focar na situação. Eu notei que o escritor era uma pessoa muito problemática. Ele ficava descrevendo o cotidiano do trabalho dele. Saí na rua e comecei a observar as pessoas. Tava quente pra caramba e o cara de paletó super estressado na rua. Aí veio a letra junto com a melodia, quase imediatamente, comecei a cantarolar”.

“A gente chamou a Ava (Rocha) pra cantar na segunda parte. Uma figura muito massa. Conheci nos aeroportos quando tava com a Legião Urbana. Ela já conhecia meu trabalho, e a gente ficou amigo. Queria uma voz que descrevesse aquilo bem de longe. A Ava tem aquela voz de bruxona. Aquela voz etérea”.

Filtra Me (Jonnata Doll)

“É a música mais antiga, a primeira que compus dessas aí, provavelmente. Fiz sob encomenda pra Céu. A gente tinha se encontrado uma vez no Parlapatões, que é um bar de teatro que fica na Praça Roosevelt, em São Paulo. A gente tava conversando, ela disse que queria fazer uma música sobre filtros. Nesse dia tava tendo umas esquetes teatrais, e tinha um ator falando muito alto, gritando. Aí a Céu: “Cara, eu não gosto de teatro quando os atores falam assim”. Entrou essa parte na música, peguei algumas falas dela, literalmente, e coloquei na letra. Aí quando fui passar pra ela, ela tinha esquecido que tinha encomendado e o Lirinha (do Cordel do Fogo Encantado) já tinha feito”.

“E a gente fez um clipe que vai sair no final de outubro com um lance meio sadomasoquista. Machuquei meu braço fazendo esse clipe. Não tô conseguindo nem mover minha mão direito, não consegui tocar guitarra no show (em Fortaleza). Toco algumas músicas nesse disco. Mas tudo bem, fiquei livre pra dançar”.

*Nota do editor:
Lirinha compôs “Sangria” com Céu.
A música está no álbum Tropix (2016).

Vale do Anhagabaú (Jonnata Doll)

“Fiz essa letra quando ia comprar fumo no Vale e fiquei observando as pessoas. Uma vez uma menina punk conversou comigo, me deu um fanzine. No mesmo dia vi um skatista levando uma queda muito feia, não sabia se o cara tava vivo ou não. Os amigos dele muito noiados. E a letra veio imediatamente, assim como “Trabalho”. Mostrei essa música pro Catatau quando ele foi lá em casa e acho que foi isso que fez ele finalmente ter vontade de fazer essa produção”.

Vai Vai (Jonnata Doll)

“Começa falando sobre uma história de Neil Gaiman, que é “Um Sonho de Mil Gatos”. Gato é uma coisa que gosto muito e é um elemento que aparece várias vezes nas letras do disco. Em São Paulo, estão sempre dentro dos apartamentos. Também fala sobre a cidade, sobre aprender com a mulher, sobre ter escuta com a mulher. E fala sobre a vida na Ocupação do Ouvidor, onde o Leo Breedlove mora. Fala de muitas coisas ao mesmo tempo. É uma um cut up, uma bricolagem”.

“Eu quis que a música tivesse um elemento de Michael Jackson, que me influenciou muito. Entrei na música, aprendi a dançar quando era criança (por causa dele). Ela tem um instrumental no começo que faz referência, embora no final vire um punk acelerado”.

Derby Azul (Jonnata Doll & os Garotos Solventes)

“Nasceu quando ouvi uma amiga que tinha frases ótimas. Fui oferecer um café e perguntei se queria sem açúcar. Ela disse: “Café com açúcar. A vida já é amarga”. Ela também dizia assim: “Ah, não vale um derby azul”. E aí a letra vei surgindo. Peguei uma citação do Álvares de Azevedo: “Feliz daquele que no livro d’alma não tem folha escrita. Saudade amarga..” E o resto continuei. Musicalmente, é uma coisa bem oitentista”.

(Foto: Marcelo Mudou)

Volume Morto (Jonnata Doll / Biagio Picorelli)

“É praticamente um manifesto. Quando começaram aquelas manifestações pedindo o impeachtment da Dilma, que se dizia popular. Era só uma parte do povo concentrada na classe média. Em São Paulo, era a classe média branca, de elite. Você via, só tinha gente branca. Famílias. Você não via as minorias, não via preto, não via gay. Era a parte conservadora da sociedade. A música fala sobre isso, vivendo em uma marcha desses tipos. Gente pedindo intervenção militar”.

“Aí chamei o Clemente pra cantar comigo. Ele é um ícone do punk brasileiro. Influenciou bastante, inclusive em Fortaleza. Embora não tenha sido uma pessoa fácil, muitas vezes. Deu seus vacilos também. Era simbólico ele estar no disco. Uma banda cearense que trabalha com o punk, com um dos pioneiros do punk falando sobre São Paulo”.

Música de Caps (Jonnata Doll)

“Fiz numa sala de espera do Caps (Centro de Atendimento Psicossocial) porque eu sou adicto. Então, eu vou no Caps me tratar. Mesmo que esteja em abstinência, como fui dependente de droga, de morfina, durante muito tempo, é uma coisa que sempre vai estar comigo. Quando você é adicto, é adicto sempre. E conheci um punk paulista que tava na sala de espera comigo. Ele pegou um vilão e tocou várias músicas pra mim. Tinha uma música que ele fez pra mãe dele, agradecendo por ter colocado ele pra fora de casa e ele aprendeu as coisas. Depois quis lembrar disso, não consegui. Não tinha o contato dele. E me veio uma letra pra ele”.

“Assim como “Vai Vai”, depois vira outra coisa. Quando entra no refrão, tô dialogando Deleuze – o filósofo francês. Ele acredita que  partir do devir, a gente pode ser qualquer coisa. E aí é uma crítica que eu faço ás políticas de minorias quando se tenta enraizar uma identidade. É complicado. Pra lutar politicamente, você tem que construir identidade pra isso. Como viciado, se quiser meus direitos políticos, tenho que colocar que sou um viciado. Se levar isso adiante demais, começa a enraizar e cria uma identidade que engessa. Acaba caindo no discurso autoritário”.

https://open.spotify.com/episode/3C87v76L8SjG6dKjjSUWGv

Serviço – Festival Muriçoca
Dia 2/10, a partir das 19 horas
Margem Esquerda Do Rio Acaraú (Rua Randal Pompeu – Sobral)
Gratuito

Programação

19h – Landeni_Lamblowloon & Os Lonies Lonies Lonies
20h – Os Bardos
21h – Manas Sobral
22h – Procurando Kalu
23h – JonnataDoll & Os Garotos Solventes
00h – DJ Kahh Vieira

About the Author

Rubens Rodrigues

Jornalista. Na equipe do O POVO desde 2015. Em 2018, criou o podcast Fora da Ordem e integrou as equipes que venceram o Prêmio Gandhi de Comunicação e o Prêmio CDL de Comunicação. Em 2019, assinou a organização da antologia "Relicário". Estudou Comunicação em Música na OnStage Lab (SP) e é pós-graduando em Jornalismo Digital pela Estácio de Sá.

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