Murchar. Cair. Enraizar. Crescer. Florescer. O segundo livro da poeta indiana Rupi Kaur – fenômeno editorial publicado no país pela Editora Planeta do Brasil – faz um percurso por cinco verbos que colocam as leitoras e os leitores em confronto com questões particulares. Incrível como poucas palavras podem nos fazer passear por tantas sensações. Os textos simples – que já são uma “marca” da escritora – continuam suscitando debates sobre como nos relacionamos com nossos corpos, com nossos parceiros, com nossas famílias, com nossos dilemas. A coletânea de poemas – traduzida para o português com o título O que o sol faz com as flores e em inglês original the sun and her flowers – é literatura em sua forma mais humilde, mais íntegra e notável. Mas isso não quer dizer falta de densidade ou falta de esmero com as produções.

Rupi Kaur utiliza o instagram para trabalhar textos (@rupikaur_)

Rupi joga os sentimentos para fora como uma pintora que não tem medo de desperdiçar tinta. Ela brinca com os próprios medos e, consequentemente, brinca também com as questões pessoais e com os sentimentos de quem está lendo. O Leituras da Bel teve acesso antecipado ao livro traduzido para o português. O volume, segundo da carreira de Rupi, está em pré-venda e deve chegar as livrarias no início de março.

Em 2014, Rupi Kaur – nascida na Índia e criada no Canadá – estreou no mercado com o livro Milk and Honey (leite em mel, em livre tradução). Permaneceu na lista de mais vendidos do The New York Times toda semana por mais de um ano e chegou a alcançar o primeiro lugar em vendas. Um sucesso editorial imenso de uma garota que postava textos curtos e ilustrações na rede social instagram – e chegou a ter, inclusive, uma imagem censurada pela plataforma por mostrar uma mancha de sangue menstrual. Críticos olharam com semblantes enviesados para o primeiro livro da autora. Afinal, quem poderia imaginar que uma jovem imigrante, mulher, feminista e poeta poderia fazer tanto sucesso em um mercado dominado por homens brancos?

Para os leitores brasileiros, o primeiro volume da carreira de Rupi Kaur chegou como Outros jeitos de usar a boca. Foi um sucesso também. Textos compartilhados nas redes sociais, impressões e mais impressões do livro, resenhas, vídeos e todo tipo imaginável de repercussão. Foi necessário que a editora produzisse uma edição bilíngue e em capa dura. Leitoras e leitores que não costumavam acessar o gênero poesia ficaram encantadas com o livro. E isso acontece, curiosamente, pela mesma razão que Rupi costuma receber tantas críticas: os textos são curtos, simples, sem grandes arcabouços na linguagem. “Pequenos demais para ser poesia”, diziam uns. “Simples demais para ser uma revolução feminista”, apontam outros. Mas quem pode dizer qual é a medida da literatura? Quem pode afirmar quais textos devem ser impressos ou não? Quem pode dizer que uma revolução é pequena? Quem pode julgar uma mulher por juntar seus pedaços e transformar em palavra?

Contrariando todas as críticas, Rupi Kaur é um fenômeno incontestável entre admiradores e odiadores. Com uma obra baseada em curtos, certeiros e pautados em temas de relevância social – a poeta indiana conseguiu suscitar uma série de discussões entre críticos e leitores. Alguns classificam os textos desenvolvidos por Rupi como chatos, enfadonhos, repetitivos e simplórios. Outros, entretanto, aprovam a delicadeza da linguagem e a forma singela de trabalhar com temas pesados – como abuso, preconceito e autoestima. O fato é que Rupi fez um estardalhaço. Vendeu livros como poucos autores venderam nos últimos anos e rodou o mundo em eventos literários movidos pela poesia. Ela encerrou uma turnê na Índia e acaba de anunciar (via instagram, óbvio) uma turnê no Reino Unido.

O que o sol faz com as flores, de Rupi Kaur

Quem espera encontrar uma continuação de Outros jeitos de usar a boca ao fazer a leitura de O que o sol faz com as flores vai ter uma pequena decepção. Rupi Kaur continua com seu estilo simples e com seus textos curtos, mas a escritora avança em vários sentidos. Cada verbo – Murchar, Cair, Enraizar, Crescer e Florescer – denomina uma parte do livro. São cinco fases distintas que representam crescimento pessoal e caminhos que apenas nós mesmas podemos trilhar. É fato que a autora prossegue com questões de relacionamentos amorosos. Há bons textos nesse nicho e que, a exemplo de Outros jeitos de usar a boca – provocam uma emoção no leitor pela simplicidade. Mas Rupi conseguiu juntar os cacos e transformar dores em poesias, também, falando de outros temas.

A distinção e o trunfo de O que o sol faz com as flores está nos novos textos trabalhados. Rupi fala abertamente sobre o processo de travessia feito pela família entre a Índia e o Canadá. Ela fala do avião, da mãe, dos afetos e do cansaço permanente ao tentar encontrar abrigo em um país onde não há pertencimentos. São textos sofridos que saíram da mulher independente e bem-sucedida, mas foram vividos pela menina que tropeçava atônita nas ruas de Toronto. Todas nós já fomos – em um ou em muitos momentos da vida – essa menina perdida diante do mundo e da vida.

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Palmas, aliás, para Ana Guadalupe. Tradutora da obra de Rupi para o português, ela consegue trabalhar os textos de forma aguçada. Traduzir poesia não é fácil e, lendo o segundo volume em português, foi possível perceber o quanto Ana se esmerou em encontrar a melhor forma de dizer o indizível. “Sem olhar, só de memória, acho que o livro novo tem mais poemas longos, que dão mais espaço pras ideias se desenvolverem — e que ficam ótimos nas apresentações de spoken word que ela faz. Nas temáticas, ela se volta mais para própria cultura, histórias da mãe e da família, experiências de outras mulheres”, declarou Ana Guadalupe. Leia entrevista com Ana Guadalupe aqui! 

De fato, os textos do segundo livro são levemente mais longos e as ideias se desenvolvem mais. Ler Rupi sempre é uma experiência atônita. Ela nos deixa aterrorizadas com nossa própria capacidade de entender o mal que nos foi feito, enquanto mulheres, ao longo da infância e da adolescência. Mas os poemas da “garota indiana” também nos deixam mais fortes, mais corajosas e mais conscientes sobre o poder que temos entre os dedos e debaixo dos cabelos. O que o sol faz com as flores é uma nova experiência e vai além.

Serviço
O que o sol faz com as flores
Autora: Rupi Kaur
Tradução: Ana Guadalupe
Preço médio: R$ 29,90

About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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