O blog do jornalista Flávio Aguiar divulga uma notícia interessante, que ele chama de “bomba relógio”: no dia 31 de dezembro de 2015, os direitos autorais do livro  “Minha luta” (Mein Kampf, em alemão), de Adolf Hitler, cairão em domínio público.

A partir da data, qualquer um poderá editar ou traduzir o livro. Segundo Aguiar, o temor é que “haja um festival de edições por parte da extrema-direita e de grupos anti-semitas”. O livro, em dois volumes, escrito entre 1925 e 1926, “conta a formação e a trajetória política do próprio Hitler e o ideário do Partido Nazista”.

Os direitos autorais do livro pertencem ao Estado da Baviera, que sempre se recusou a reeditá-lo ou a permitir novas edições.

Em seu blog, Flávio Aguiar mostra a trajetória do livro e outras curiosidades, como a existência de uma edição brasileira de 1936, da editora Globo, de Porto Alegre.

Flávio chama de “questão espinhosa” decidir sobre a publicação ou proibição do livro, devido à sua pregação racista e totalitária, ainda que reconheça a pertinência da pergunta.

Sobre o assunto, ele diz: “Sempre respondi que, à proibição, eu preferia (como quer agora o Instituto de Munique) ver uma instituição universitária realizar uma edição fundamentada, anotada e comentada daquela tradução, que incluísse a história do próprio livro e sua trajetória no Brasil. Isso porque em matéria de proibição de livros a gente começa com ‘Minha luta’, num gesto que teria o apoio de muita gente sensata, mas nunca se sabe onde se vai chegar, com o apoio de muita gente insensata”.

Censura?

Confesso que, por vezes, também fico um tanto dividido em questões assim. Mas meu instinto é rechaçar qualquer forma de censura, ainda que isso possa parecer ingenuidade ou confiança demasiada na capacidade de dicernimento das pessoas.

Em 2001, o STF [Supremo Tribunal Federal] julgou um caso que envolvia o tema. Manteve a prisão do editor gaúcho Siegfried Ellwanger, condenado pelo Tribunal de Justiça de Porto Alegre por divulgar livros com conteúdo considerado antissemita.

A decisão foi tomada no julgamento de um pedido de habeas-corpus formulado pelo réu. Foram oito votos a três.

O tribunal concluíu  que quem propaga idéias discriminatórias contra judeus comete o crime de racismo, segundo estabelece a Constituição.

Votaram contra a concessão do Habeas Corpus os ministros  Maurício Corrêa [então presidente do STF],  Celso Melo, Sepúlveda Pertence, Cézar Peluso, Gilmar Mendes, Carlos Velloso, Nelson Jobim, e Ellen Gracie.

Votaram a favor da concessão do habeas corpus os ministros Marco Aurélio Mello, Moreira Alves e Carlos Ayres Britto.

O julgamento foi acompanhado por vários integrantes da comunidade judaica, incluindo o rabino Henry Sobel, que disse na ocasião: “Foi um julgamento histórico. Como brasileiros e judeus, só podemos aplaudir a decisão do STF. A Justiça puniu exemplarmente alguém que fomenta o ódio e o preconceito, o que, além de ser ofensivo e imoral, é proibido pela Constituição”.

Veja aqui, em Notícia STF, como os ministros justificaram os seus votos.

Leia a seguir artigo escrito na época por Hélio Schwartsman, que “apesar” de sua “ascendência judaica”, manifesta-se contra a condenação do editor.

Até onde vai a liberdade de expressão?
Hélio Schwartsman – “Pensata” – Folha Online – 27/12/2001

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou habeas corpus ao editor Siegfried Ellwanger, que foi condenado, com sentença transitada em julgado, por crime de racismo. Ellwanger, que assina como S.E. Castan, escreve e vende livros com mensagens anti-semitas. Já li alguns de seus opúsculos. É puro lixo.

Através de mentiras, falácias, distorções, fraudes e todo tipo de falsificação da verdade, ele tenta provar que, durante o nazismo, nunca houve campos de extermínio e que os alemães é que foram vítimas de um holocausto perpetrado por judeus. Trata-se de material que ninguém com mais de meia dúzia de neurônios pode levar a sério.

Mesmo desprezando profundamente as atividades a que o sr. Ellwanger se dedica e apesar de minha ascendência judaica, que me dá motivos para querer ver aniquiladas na origem todas as formas de neonazismo, não acho que a condenação do editor faça muito sentido.

Não li os autos do processo, mas é evidente que estamos diante de um daqueles casos clássicos de oposição entre dois princípios constitucionais. De um lado, a Carta define o racismo como crime inafiançável e imprescritível; de outro ela estabelece uma liberdade de expressão forte, vedando apenas o anonimato.

Pessoalmente, fico com a liberdade de expressão. Para dizer a verdade, acho que foi demagogia do constituinte de 1988 a criação do crime de racismo. Leis não mudam a forma como as pessoas vêem o mundo e seus semelhantes.

O racismo é um fenômeno complexo, que se manifesta das mais diversas maneiras. Tipificar uma conduta racista para efeitos de enquadramento penal é quase uma impossibilidade. Prova-o o reduzidíssimo número de condenações por racismo transitadas em julgado.

Acho ótimo que a lei diga que é proibido discriminar alguém por motivos raciais. Só que não funciona. É simplesmente impossível provar em juízo que uma pessoa de uma determinada minoria deixou de receber uma promoção em virtude de sua “raça”. Isso não quer dizer, evidentemente, que a discriminação não exista. Ela está aí e é muito forte. Pode até ser demonstrada por estatísticas, pelo baixo número de negros, por exemplo, em cargos de chefia. Diante do juiz, contudo, o chefe que preteriu o negro sempre poderá argumentar que preferia o outro candidato por razões legítimas. A lei não pode impedir que motivações subjetivas influam em decisões como as de promover, contratar, demitir.

O caminho para eliminar a chaga do racismo é bem mais árduo e penoso. Passa principalmente pela educação e, circunstancialmente, pela adoção de políticas de ação afirmativa, apesar das enormes dificuldades teóricas e práticas para implementá-las.

A questão da liberdade de expressão deveria ser mais cristalina. Eu sou um dos que a defendem em sua forma mais robusta. Pessoalmente, acho que, enquanto a polêmica está no campo das palavras, deve valer tudo.

Admito, porém, que essa é uma idiossincrasia minha. Muitos países democráticos condicionam a liberdade de expressão e não se tornam muito menos democráticos por isso. Na Alemanha, por exemplo, é proibido defender posições nazistas. No Reino Unido, ainda perdura uma lei de censura que não é exatamente tímida.

Nesse ponto, vejo-me obrigado a elogiar os norte-americanos que, pelo menos até o 11 de setembro, aplicavam a mais irrestrita liberdade de expressão. Você podia defender teses racistas, comunistas, nazistas. Podia até advogar a eliminação do governo federal. Bastava que não atirasse bombas contra prédios federais, que o pior que lhe aconteceria era ter agentes do FBI monitorando suas atividades.

Evidentemente, defender teses nazistas, anarquistas ou comunistas não é um fim em si mesmo. Mas, quando você pode fazê-lo, tem a certeza de que pode mesmo dizer tudo o que pensa a quem queira ouvir. E essa liberdade é, sim, uma das metas da democracia.

Talvez por vício de formação não consigo admitir a idéia de que a liberdade de expressão só vai até certo ponto. Ou há liberdade para pensar _e expressar esse pensamento_ ou não há. Aqui opera o princípio do terceiro excluído. Não importa se esse pensamento é algo verdadeiramente genial ou um amontoado de sandices ignominiosas, como no caso do sr. Ellwanger. A lei não pode constituir embaraço à plenitude do pensamento, o que implica renunciar ao controle sobre seus conteúdos.

Se o que os neonazistas dizem é uma montanha de mentiras, paciência. Temos de conviver com isso. Ou amanhã alguém poderá tentar nos censurar sob o pretexto de que o que dizemos também são mentiras. Viver em democracia não é fácil.

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