Artista plástico e compositor de loas, Descartes Gadelha, ataca aqueles que defendem que o ritmo triste e arrastado do maracatu seja uma tradição a ser preservada no Ceará. Pelo contrário, trata-se de uma deformação, diz o macumbeiro – como também são chamados os compositores de loas.
Ele também critica outras supostas tradições do maracatu, que encena a cerimônia da coroação dos reis do Congo – por isso “congada” era o nome original da cerimônia.
Descartes deu entrevista para o caderno Vida & Arte do O POVO, deste domingo. Reproduzo alguns trechos abaixo, mas vale a pena ler a íntegra.
«O maracatu dessa época já usava esse ritmo, bem gostoso, bem contagiante. Essa alegria perdurou muitos anos. Só que, quando as televisões e as revistas passaram a publicar as fantasias dos bailes de Carnaval do Rio de Janeiro e das escolas de samba, os donos de maracatu, vendo a beleza plástica das fantasias, disseram que nosso maracatu era pobre: era feito com renda do Aquiraz, algodãozinho, chita. Foi quando os figurinistas entraram para o maracatu [ na década de 1960]. A renda foi substituída por lamê, veludo, cetins importados, e o maracatu foi descaracterizado culturalmente. Perdeu na força folclórica, mas ganhou em showbusiness. Aí é que entra a parte melódica. Como é que se podia dançar com fantasias de 30 quilos? A solução foi acabar com o batuque. Tiraram a coisa frenética e colocaram um ritmo de enterro, de procissão, muito lento, tristonho, pra ninguém dançar. O importante era o maracatu desfilar com fantasias luxuosas. O ritmo foi pras cucuias. As fantasias eram lindas, mas o espírito do maracatu se perdeu. Deixou-se de dançar. […] E isso foi por tanto tempo que as pessoas começaram a achar que era característica do nosso maracatu. […] Esse conceito de originalidade do maracatu ser triste, funesto, é um erro de 30, 40 anos e só.»
«O maracatu é uma das peças da consciência negra. Mas por que um negro, quando desfila no maracatu, é obrigado a pintar a cara de preto? […] Existem grupos de negros que não participam do maracatu por se sentirem agredidos.»
«Eu estou com 67 anos. Na minha infância, nós íamos atrás dos maracatus rodando toda a cidade de Fortaleza, da Praça do Ferreira pra Igreja da Sé, passando pela Dom Manuel, e a praça José de Alencar. Eram 10, 12 quilômetros de batuque. A intenção nossa, minha e do Pingo [cantor e compositor] , é de tornar o maracatu como ele é, uma festa de alegria, de participação.»
Sempre que escuto alguém falando de descaracterização das tradições, tento entender o recorte de tempo sobre o qual o reclamante se coloca, sobre que ângulo ele mira o presente. Em se tratando de manifestações populares o que pretendem com a defesa de posição A ou B. Tenho muito respeito pela figura do nosso Griot Descartes, criador de maracatus, mestre de rítmos e plásticas, mas acho a polêmica sobre rítmo e máscara do nosso maracatu pouco eficaz e oportuna. Primeiro porque não acredito ser possível rastrear os sentidos das transformações quando se fala de uma tradição que envolve não um ou dois nomes, mas milhares de pessoas que hoje fazem as 13 agremiações de Maracatus que logo mais estarão desfilando na avenida. Segundo porque se apelo para minha memória de infância, tenho na batida lenta uma referência não de enterro ou de tristeza, mas de imponência majestática. Sobre a pintura do rosto, em nada ‘denigre’ (rsrs) a negritude do negro que se pinta. A máscara está presente em todos os ritos, encenações. Veio, ficou, talvez se vá. Vamos também questionar a máscara do índio que hora tende para guerreiros africanos, hora quase parece sair de um faroeste americano? Essa coisa de consciência negra do maracatu é coisa recente também, coisa dos anos 80 quando ongs e ativistas políticos se apropriam do maracatu. São muitas as questões para serem abordadas aqui, mas hoje é carnaval e será na avenida que as transformações, afirmações e transgressões da tradição se farão. Vamos à rua Maracatucar!
A questão que o Karlo levanta merece ser considerada, afinal ninguém pode ter a palavra final sobre determinado tradição cultural. Porém, eu me posiciono numa questão, o Descartes além de um carnaalesco, artista, brincante (o conheci no antigo Ispaia Brasa) é também um respeitável pesquisador. Depois da entrevista ficou fácil entender melhor o Maracatu do Ceará. Uma boa discussão, por que não ouvir outras pessoas, Plínio? Seria interessante.
Caro Augusto,
Vou sugerir a pauta à Redação do O POVO.
Agradeço seu comentário,
Plínio
Sou admirador do Descartes Gadelha. Inclusive, possuo um dos quadros mais bonitos de autoria dele: Jantar no Estaleiro, pintado em novembro de 1972. Mas sou e sempre fui admirador e fã dos Maracatús. Pinricpalmente do As de Espada. A cadência da batucada dos maracatús é simplesmente insuperável. Nada tem de tristeza. Mexe com a nossa alma, o nosso sentimento. O Plínio tem toda razão.
Participei dos blocos dos pobres, dos sujos, na década de 50, que desfilavam na Avenida D. Manoel. Só saudades dos momentos de alegria e de emoção.
O tema tem que ser aprofundado. Valeu, Karlo e Augusto.
Grande Descartes, quanto tempo. Fui seu aluno de artes, e companheiro de trabalho na extinta RFFSA, fomos desenhistas de profissão.
O tema discutido realmente é muito complexo, e mereci uma avaliação ampla.