Reprodução do artigo publicado na coluna “Menu Político”, caderno “people”, edição de 7/12/2014, do O POVO.

Carlus

Dormir é para os fracos
Plínio Bortolotti

Quando eu era menino havia duas coisas que considerava inúteis, devido ao tempo nelas despendido: tomar banho e dormir. Como sabia ser impossível escapar da escova e do sabão da minha mãe, imaginava uma máquina em forma de cabines cilíndricas – a primeira despejando água e a segunda borrifando ar quente -, na qual se entraria em um ponta, saindo-se na outra, em poucos segundos, com o corpo lavado e enxugado.

Quanto ao sono, pensava em uma pílula que me revigorasse sem as longas horas na cama, que me roubavam a rua, me afastavam dos cuidados que precisava dispensar à minha criação de coelhos, dos diversos jogos ao ar livre próprio de garotos suburbanos, além de incursões por um matagal nas proximidades de minha casa.

Lendo o artigo “O sono acabou”, publicado na revista piauí, entendi em profundidade o porquê do aforismo “Cuidado como o que você deseja”. Jonathan Crary descreve um estudo do Departamento de Defesa americano sobre a possibilidade de manter uma pessoa sem dormir, permanecendo vários dias desperta, de maneira produtiva e eficiente. O objetivo seria criar um soldado “sem sono”, apto a participar de missões que exigissem grande esforço e vigília permanente.

Além desse estudo, as Forças Armadas americanas financiam vários outros na área de pesquisa do cérebro, inclusive uma droga contra o medo. A ficção cinematográfica pode dar uma ideia de onde podem chegar essas pesquisas, de Wolverine ao “Soldado universal”.

Para isso, pesquisadores estão analisando o mecanismo que mantém o pardal-de-coroa-branca, uma ave migratória, sete dias acordado, permitindo-lhe voar à noite e a buscar alimentos incessantemente. O pássaro é exceção no mundo animal. Em experiência, ratos morrem após três semanas de insônia; aos seres humanos, bastam alguns períodos curtos de privação do sono para produzir psicose; após algumas semanas, danos neurológicos são inevitáveis.

O objetivo do Departamento de Defesa, a curto prazo, é desenvolver métodos que permitam a um combatente ficar sem dormir pelo menos sete dias. No longo prazo a finalidade é duplicar o período, preservando altos níveis de desempenho mental e físico.

Com sempre acontece, as inovações militares sendo absorvidas pela vida civil, Crary diz que o “soldado sem sono” seria o precursor do trabalhador ou do consumidor em permanente vigília. “Produtos contra o sono, após agressiva campanha de marketing das empresas farmacêuticas, iriam se tornar uma opção de estilo de vida e depois, para muitos, uma necessidade.”

Crary atribui ao mercado a ânsia por suprimir o sono, pois esse período improdutivo subsiste “como uma das grandes afrontas humanas à voracidade do capitalismo contemporâneo”. Para ele, o sono é a das últimas necessidades “aparentemente irredutíveis da vida humana”, que ainda não se transformaram em mercadoria ou investimento, como já acontece com a “fome, a sede, e o desejo sexual” e, mais recentemente, à carência de amizade (ele não cita, porém suponho que seja referência à disseminação das redes sociais na internet).

No mundo 24/7 (24 horas por dia, sete dias por semana), seguindo o paradigma neoliberal globalista, diz Jonathan Crary, “dormir é, acima de tudo, para os fracos”.

NOTAS

Piauí
O artigo completo de Jonathan Crary, cujos argumentos foram resumidos nesta coluna, pode ser visto na revista piauí .

Homem máquina
No mesmo sentido do texto de Crary, recentemente vi documentário em que cientistas afirmam estar próximo o dia em que a interface homem/máquina e máquinas humanóides serão cada vez mais comuns.

Cérebro
O físico Stephen Hawking já afirmou que chegará o tempo em que o cérebro humano poderá ser copiado para um computador, permanecendo “vivo” após a morte do corpo. Para ele, o funcionamento do cérebro assemelha-se a um software poderoso e a mente a um circuito eletrônico que permite seu funcionamento.

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