Reprodução do artigo publico na coluna “Menu Político”, caderno “People”, edição de 18/1/2015 do O POVO.
Plínio Bortolotti
“O bom senso é o que existe de melhor dividido no mundo, pois cada um se julga tão bem dotado dele que ainda os mais difíceis de terem satisfeitos em outras coisas, não costumam querê-lo mais do que tem”. Toda vez que alguém fala em bom senso, vem-me à lembrança a frase inicial do Discurso sobre o método, de René Descartes.
Na semana retrasada publiquei nesta coluna o artigo “Qual o limite da liberdade de expressão?”, debatendo o assunto a partir da polêmica surgida com a agressão verbal do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) à sua colega Maria do Rosário (PT-RS), dizendo que não a estuprava porque ela “não merecia”; e do caso mais antigo do candidato a presidente Levy Fidelix (PRTB-SP) que, na campanha, convocou seus eleitores a “enfrentar essa minoria” referindo-se aos homossexuais. Nos dois casos setores da esquerda propuseram punir a ambos com a cassação, alegando que a liberdade de expressão não protegia o “discurso do ódio”. Ou seja, a exigência era que se calassem as vozes divergentes do “politicamente correto”.
Agora, com o covarde ataque contra a o jornal francês Charlie Hebdo, surgem vozes, que vão do cartunista Carlos Latuff (simpático à causa muçulmana) ao católico Leonardo Boff – passando por segmentos da esquerda e da direita -, que condenam o assassinato dos jornalistas, pospondo um obsceno “mas”, que busca “compreender” a atitude os terroristas. Latuff diz que faltou “bom senso” aos chargistas franceses, o que teria atraído a ira dos extremistas. A resposta a ele já foi dada por Descartes, no século XVII, como pode ser visto acima. (Não faltará também gente para acusar falta de bom senso nos desenhos de Latuff; os judeus, principalmente.)
Um texto exemplar, que talvez resuma a insanidade dos partidários dos “mas”, é do padre Antonio Piber (*), reproduzido no blog do religioso Leonardo Boff, ele mesmo perseguido por suas ideias, dentro que uma organização, a Igreja Católica, à qual ele aderiu voluntariamente, portanto, sabia de suas regras, diferentemente dos jornalistas da Charlie Hebdo, que nunca se comprometeram com nenhuma.
Boff elogia o texto de Piber, que culpa as vítimas pelo seu próprio assassinato, lamentando que a Justiça francesa não tenha censurado a Charlie Hebdo em 2006, pedido feito por organizações muçulmanas, quando foram reproduzidas os cartuns sobre Maomé publicadas no jornal dinamarquês Jyllands-Posten. Piber não tem nem mesmo vergonha de classificar as charges do Charlie Hebdo de “criminosas”, equiparando a arte de desenhar com a ação de assassinar. O “teólogo e historiador”, como é apresentada Boff, considera que se a Justiça francesa tivesse punido a revista (leia-se censurado) “o atentado poderia ter sido evitado”. Sério? O “teólogo” acredita mesmo que esse tipo de terrorista se deteria frente à “justiça ocidental burguesa”?
Boff, não fica atrás, considera o ataque extremista “como uma resposta a algo que ofendia milhares de fiéis muçulmanos”; porém, generosamente, ressalva: “Evidentemente não se responde [às charges] com o assassinato. Mas também não se devem criar as condições psicológicas e políticas que levem a alguns radicais a lançarem mão de meios reprováveis sob todos os aspectos”. Mesmo? E qual seria a próxima exigência dos “radicais”? Que se proibissem mulheres de biquíni nas praias para não ofender o “profeta”? E o que se faria? Mandar-se-ia que elas fossem tomar banho de burca?
Perdidos
Setores de esquerda ficaram como baratas tontas com o ataque. Viram-se obrigados a condenar a ação terrorista, ao tempo em que exigem censura à liberdade de expressão no Brasil, escondendo-se atrás do argumento de que são contra o “discurso do ódio”.
Veja e Charlie
É claro que, diferentemente do que fantasia a direita, há distância oceânica entre a Veja e o Charlie Hebdo: a revista brasileira é submissa ao poder (ainda que seja contra o governo); o hebdomadário francês não respeitava nenhum. Entanto, se a semanal brasileira sofresse ataque violento, todos estaríamos na obrigação de defendê-la, mesmo sem assinar “#eu sou veja”.
Compreender
O discurso de que é preciso “compreender” o ataque terrorista é obtuso. Tudo pode ser “compreendido”, inclusive as ações de Hitler. Imagine o seguinte discurso: “Hitler construiu os campos de concentração, exterminou milhões de judeus, MAS é preciso compreender que fez isso depois da humilhação a que a Alemanha foi submetida depois da Primeira Guerra”. Quem há de?
Créditos
Declarações de Carlos Latuff; artigo de Antonio Piber, com abertura de Leonardo Boff.
(*) Correção
Atribuí a autoria do texto, objeto desta minha crítica, ao padre Antonio Piber, seguindo anotação do blog de Leonardo Boff, que o reproduziu. Depois, o próprio Boff fez a correção em seu blog, afirmando que o texto era de Rafo Saldanha e que teria “acréscimos” do padre, aqui. Entanto, quando tomei ciência da correção, o artigo já estava editado. De qualquer modo, isso não altera as críticas que fiz no meu artigo. (No “Menu Político” da próxima semana publicarei esta correção no jornal impresso.)