Reprodução da coluna “Menu Político” publicada no caderno “People”, edição de 14/2/2016 do O POVO.

O húngaro e o português
Plínio Bortolotti

Na semana passada, no artigo “O americano e o português” comentei um capítulo do livro Deve ser brincadeira, sr. Feynman, de Richard P. Feynman (1918-1988), cientista Prêmio Nobel de Física (1965), em que ele conta como aprendeu o português e sua passagem pelo Brasil, quando deu aulas no Rio de Janeiro.

É sempre interessante observar os motivos que levam uma pessoa a aproxima-se de uma língua e como o aprendizado revela tanto sobre quem aprende quanto sobre o povo do idioma aprendido.

Feynman, por exemplo, que aprendia espanhol nos Estados Unidos – pois queria visitar a América Latina -, viu uma bela mulher entrar na sala de português e resolveu trocar de língua. Porém, recuou devido à sua “atitude anglo-saxônica”, pois aquele não seria um bom motivo para escolher um idioma para estudar. Voltou ao português, agora por bom motivo (do ponto de vista anglo-saxão), quando lhe ofereceram a oportunidade de trabalhar no Brasil por alguns meses.

Outra história muito interessante é a de Paulo Rónai (1907/1992), húngaro de nascimento, que se transformou em um dos maiores intelectuais do país, apaixonado pelo Brasil. No livro Como aprendi o português e outras aventuras, ele conta como se interessou pela língua em sua Budapeste natal, sem saber que um dia seria obrigado a fugir de seu país, perseguido pelo nazismo (ele era judeu), e como o destino o traria ao Brasil.

Rónai diz que no início da década de 1940 ensinava latim e italiano em um ginásio de Budapeste. O seu grupo intelectual estudava “idiomas exóticos” ou extintos – e diz ter ficado com vergonha de informar a eles que estava se interessando pelo português “fácil demais”, na visão dos amigos.

Ele começou pelo português de Portugal, até cair-lhe nas mãos um livro de poesia brasileira. Depois de escrever uma carta para o jornal carioca Correio da Manhã, que foi publicada, ele diz ter passado a receber “copiosa correspondência” do Brasil, ajudado-o no aprendizado.

Com o início da Segunda Guerra Mundial, o governo húngaro, pró-nazista, prende Rónai em um campo de trabalhos forçados. Ele consegue fugir para Portugal, tendo como objetivo chegar ao Brasil.

Mas o estudo da língua de Camões de nada lhe serve para conversar com os portugueses, ainda que lhe possibilitasse ler perfeitamente os jornais. “Passei seis semanas em Lisboa sem que conseguisse entender patavina da língua falada.”

Mas veja como ele relata a sua chegada ao porto do Rio de Janeiro.

“Cheguei uns vinte dias depois. Que alívio logo na entrada! O Brasil recebia-me com uma linguagem clara, sem mistérios. Ainda não desembarcara, e já não perdia nenhuma das palavras do carregador que, em compensação, perdeu uma de minhas malas. Entendi igualmente o funcionário da alfândega; e de tão satisfeito, não lhe rebati a surpreendente afirmação de que o português e o húngaro eram línguas irmãs. O deslumbramento continuou na rua, no primeiro táxi, no hotel. O idioma que eu aprendera em Budapeste era mesmo o português!”

Não parece um minirretrato do Brasil? Carregadores que puxam conversa, o sumiço(?) da mala, funcionários que deveriam apenas verificar passaportes, mas puxam conversas aleatórias com passageiros. E o deslumbramento do estrangeiro – aparentemente com a língua – mas deve ter-lhe atingido em cheio também a explosão de cores e a beleza estonteando da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

NOTAS

Epígrafe
“Considerar a forma como aprendemos uma língua é um pouco como observar o desenvolvimento de um sentimento amoroso.” Paulo Rónai usa essa frase do escritor francês Valery Larbaud como epígrafe da crônica/conto “Como aprendi o português”.

Língua do diabo
Segundo li em Budapeste, livro de Chico Buarque, húngaro é a única língua que o diabo respeita. (Creio que ele deve ter recolhido a frase de alguma outra fonte.)

Créditos
Neste texto usei trechos de um post, sobre o mesmo assunto, que escrevi para um antigo blog que mantinha na plataforma Blogspot.

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