O jornal Folha de S. Paulo entrevistou recentemente o cientista político americano Yascha Mounk, devido lançamento de seu livro O povo contra a democracia (Companhia das Letras). O título provocativo explica-se pela onda reacionária que está levando liberticidas ao poder em vários países, por meio de eleições livres. São casos como a eleição nos Estados Unidos (Donald Trump), na Turquia (Recep Erdogan), Hungria (Viktor Orbán) e Brasil (Jair Bolsonaro).

A surpresa é que esses movimentos surgiram quando parecia – após o fim da União Soviética – que a democracia liberal havia triunfado definitivamente. A expectativa era tão grande ao ponto de um dos livros icônicos da época ter sido “O fim da história”, de Francis Fukuyama, como se nenhuma outra possibilidade política fosse possível.

Mounk apontou duas razões pela contrariedade de tantas pessoas pelo mundo que elevaram os populistas ao poder: 1) Em muitos países, mesmo nos mais ricos, o padrão de vida está estagnado, em nível abaixo do esperado pelas pessoas; 2) o medo que a democracia multiétnica (imigração) desperta em grande parcela da população. (Em alguns casos cria-se um “inimigo” interno, como a corrupção, por exemplo, como no caso do Brasil).

Para o cientista social, “a democracia enfrenta agora seu maior desafio. As pessoas estão perdendo a fé no sistema. Passaram a eleger líderes autoritários, que atacam a ordem institucional, com a desculpa de que representam a vontade popular. Então o risco é muito mais complexo e sutil, pois resulta de demandas da sociedade”.

A situação, diz Mounk, apresenta o seguinte dilema: a estabilidade da democracia foi determinada por condições econômicas e culturais que não existem mais? A resposta talvez seja sim, diz ele. Ele afirma que os políticos nunca tiveram muito prestígio com a população, mas acreditavam no sistema quando havia melhora constante da renda.

Mas o cientista social ressalva que a história dessa estabilidade, democrática sempre esteve vinculada a um alto grau de homogeneidade racial, religiosa e cultural. Os brancos quase sempre desfrutaram de incontáveis privilégios, enquanto imigrantes não eram reconhecidos como cidadãos verdadeiros em inúmeros países do Ocidente.

De minha parte, tenho pouca dúvida de que se vive em uma encruzilhada histórica, na qual está se jogando o futuro da democracia. Por isso, talvez seja a hora de todos os que amam a liberdade começarem a fazer alguma coisa. Uma delas é reconhecer os limites da democracia em que vivemos, bastante excludente, comprometendo-nos com a sua ampliação; depois é buscar incluir nessa luta todos aqueles que tenham o mesmo espírito democrático, secundarizando outras possíveis diferenças políticas.

Assim eu chego a outro texto publicado na Folha de S. Paulo, um artigo do escritor João Pereira Coutinho, comentando o debate entre o filósofo esloveno Slavoj Zizek e o psicólogo canadense Jordan Peterson, ocorrido em 19 de abril, em Toronto (Canadá). Noticiado pelos jornais como o “combate do século”, pois Zizek seria o “campeão dos esquerdistas” e Peterson o “peso-pesado dos direitistas”, esperava-se uma carnificina. Porém , “sobressaiu uma mensagem a favor do diálogo e contrária ao refúgio nas trincheiras mentecaptas” (os “torcedores”, de ambos os lados que esperavam “sangue no ringue”).

Coutinho mostra como os dois contendores, aparentemente opostos, mostraram pontos de concordância em várias ocasiões. Zizek começou por dizer que a palavra “comunismo” só pode ser usada como “provocação”, depois dos desastres do século XX. Ele reproduziu, na visão de Coutinho, a “velha cantiga social-democrata” de que é preciso “regular” e “limitar” o capitalismo, não subvertê-lo ou destruí-lo. “Quem esperava um Zizek bolchevique apanhou pela frente um Woodrow Wilson para o século 21.”

Por sua vez, Peterson, que estava ali para defender o capitalismo “com unhas e dentes”, admitiu que alguns aspectos do sistema são danosos para as virtudes sociais. E que a vida não poderia ser “comodificada”, sujeita às leis da oferta e da procura.

Para Coutinho, “no fundo” Peterson teria se limitado a “a repetir o velho credo conservador que sempre olhou para a ‘sociedade comercial’ com ambiguidade”. Evocando o dito de Winston Churchil sobre a democracia, Peterson disse que o capitalismo é o pior sistema econômico que existe, com a exceção de todos os outros. Como anotou Coutinho, para Peterson, o capitalismo produz riqueza e diminui a pobreza; mas não é incompatível com a luta pela igualdade de oportunidades ou com uma eficaz redistribuição de renda. “Jordan Peterson virou escandinavo e Zizek gostou.”

Assim, resumiu Coutinho, ambos parecem defender, em maior ou menor grau, uma mistura de Estado com mercado. Acrescento eu, seria uma espécie de fusão com o que há de melhor nos dois sistemas, pois “a maioria dos capitalistas não sabe dividir o bolo da economia e a maioria dos socialistas não sabe bem como fazê-lo crescer”, conforme afirma o bilionário Ray Dalio.

Por último, a parte que Coutinho considerou mais interessante: uma “mensagem de desprezo e alguma exasperação” que ambos os contendores demonstraram para a nova esquerda das causas identitárias. “No passado, a ideia era mudar o mundo. Agora, o desejo revolucionário é mudar as palavras, os pronomes, os gêneros, os banheiros.”

Mas o que interesse nessas mal traçadas, as poucas palavras que restaram de minha lavra, é chamar a atenção para o ponto em que os debatedores concordam que nem tudo pode ficar nas “mãos invisíveis do mercado” e nem nas mãos de um Estado totalitário. Assim, é preciso controlar o capitalismo e combater o totalitarismo.

O que eu quero dizer é o seguinte: é plenamente possível abrir um diálogo entre a direita democrática e a esquerda democrática, de modo a se ter um mundo mais justo e igualitário, preservando a liberdade.
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Escrevi o texto com base em reportagem da Folha de S. Paulo: Democracia liberal está sendo corroída, afirma cientista político.
E do artigo de João Pereira Coutinho no mesmo jornal. (As opiniões que emiti, por óbvio, são de minha responsabilidade). Também pode ser interessante ver Bilionário diz que capitalismo falhou.