Reprodução do artigo publicado na editoria de Opinião, edição de 2/5/2019 do O POVO.

Drogas: a pesquisa perdida

Pesquisa encomendada à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ainda no governo de Dilma Roussef (PT) e concluída na administração de Michel Temer (MDB), quando foi engavetada, continua sendo rejeitada pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL). O estudo, com o objetivo de orientar a política governamental sobre drogas, custou R$ 7 milhões, entrevistando 17 mil pessoas em todo o Brasil.

A Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), do Ministério da Justiça, afirma que a Fiocruz descumpriu os termos do edital e que haveria problemas metodológicos na pesquisa. A crise entre a Fiocruz e a Senad chegou a tal ponto que a Advocacia Geral da União (AGU) está buscando conciliação entre as partes, que deverá chegar a uma destas alternativas: ou a Senad chancela a pesquisa ou a Fiocruz terá de devolver os recursos recebidos ou fazer novo estudo.

Para especialistas no assunto, o problema ocorre porque, tanto para o ministro da Saúde do governo Temer, quanto o atual, haveria uma “epidemia de drogas” no Brasil, especialmente de crack, situação que não foi confirmada pelo estudo.

Apesar de a droga ilícita ser um problema grave, constatou-se, por exemplo, que o crack foi usado por 0,9% da população alguma vez na vida; 0,3% consumiu no último ano e apenas 0,1% nos últimos 30 dias anteriores à pesquisa. No mesmo período, a maconha foi usada por 1,5%, e a cocaína, por 0,3% dos brasileiros. O mais preocupante seria o uso abusivo do álcool: 66,4% consumiram bebidas alcoólicas alguma vez durante a vida; 43,1% no último ano e 30,1% nos últimos 30 dias. Entraria na questão, portanto, um componente “ideológico” com o objetivo de negar a pesquisa, evitando um debate mais aprofundado sobre qual o tamanho do problema ocasionada pelas drogas ilícitas e lícitas.

De qualquer modo, não é surpresa que um governo que retira radares da estrada com base no argumento do senso comum da “indústria de multas”, refugue também um estudo que contraria a sua ideologia, que propõe uma espécie de “guerra às drogas”.

PS. A Fiocruz foi liberada para divulgar a pesquisa, mas sem a chancela da Senad. Veja trechos no Intercept Brasil.

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