Uma aspecto pouco comentado na crise da Bolívia é o fato de o movimento que derrubou o presidente Evo Morales ser chamado de “golpe cívico-militar e policial”. Essa classificação parte tanto de Morales e seus aliados quanto de alguns analistas internacionais. 

A citação à polícia refere-se à sua ativa participação na queda de Morales, papel de relevância que, nas sedições tradicionais, era reservado aos militares das Forças Armadas. Esses, desta vez, optaram por um “pedido” para que Morales renunciasse, e – até agora – não fizeram nenhum movimento aparente para eles mesmos ocuparem o vácuo de poder que se criou

Outro elemento a ser analisado a respeito da conjuntura boliviana é o papel de Luis Fernando Camacho, o “Bolsonaro boliviano” (o apodo já explica tudo), que anda com uma bíblia na mão, apelando ao “Todo Poderoso” em seus comícios, enquanto a suas milícias barbarizam pelas ruas: agridem com violência aliados de Morales – arrastam desafetos pelas ruas, põem fogo na casa de irmã do presidente e de uma jornalista, e amarram outro em um poste. Para Julio Cordova, sociólogo boliviano especializado em movimentos evangélicos, Camacho “legitima sua posição autoritária com o discurso religioso no estilo Bolsonaro” (BBC Brasil).

(Alguém vai perguntar: “E o Chile?” Lá, até onde sabe, não há violência contra nenhum integrante do governo.)

Acrescente-se um artigo assinado por José Ospina-Valencia, jornalista da Deutsche Welle, no qual ele afirma que as igrejas neopentecostais ameaçam democracia na América Latina. Para a ele, a luta dessas denominações é “uma luta pelos pobres, por sua consciência, suas carteiras e por seus votos”, citando o Brasil como um dos países onde essas igrejas mais se desenvolvem. É sempre bom lembrar que Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, proprietário da Rede Record, tem um “plano de poder” para o Brasil, conforme já assinalei neste blog.

FOI GOLPE?

Hoje quase todos o que têm militância partidária, jornalística ou acadêmica estão sendo convocados a responder a essa pergunta.

No texto que escrevi ontem, no calor da hora, anotei que Morales poderia ter deixado o governo no terceiro mandato, e teria saído quase como um herói  e não pela porta dos fundos, como aconteceu. Quanto à intervenção dos militares, anotei que era preocupante – e também registrei as agressões físicas contra partidários de Morales. 

Mas fiquei pensando: como classificar os acontecimentos da Bolívia?

Hoje de manhã (11/11/2019), li no Twitter do jornalista Pedro Doria:

“Quando há um golpe de Estado é preciso, primeiro, descobrir quem propositalmente atuou para promover a ruptura institucional. Na Bolívia, não foi o Exército. Foram as milícias. ‘Macho’ Camacho. Este golpe não tem nada de clássico ou tradicional. Me parece o 1º Golpe Miliciano.”

Apesar de entender que o Exército tivera um papel determinante, fiz uma nota mental: me alertou para um possível novo tipo de golpe.

À tarde, li o comunicado do governo Espanhol – socialista, porém moderado e cauteloso – alertando que a situação na Bolívia “relembra momentos passados da História latino-americana” (clara referência às ditaduras na região), pedindo a “todos os atores” para evitar a violência.

Assistindo a Globonews, à noite, vi a jornalista Mônica Waldvoguel fazendo a pergunta inexorável ao colega de bancada, Demétrio Magnoli: “Foi golpe?” Sem pestanejar, ele respondeu: “Foi contragolpe”. E justificou: um golpe fora dado por Morales ao desrespeitar a Constituição, que lhe impedia mais um mandato, assim o Exército, dera outro golpe para se contrapor ao primeiro, portanto concluiu, tratou-se de um contragolpe.

Ocorre que, para o bem ou para o mal, Morales estava coberto por uma decisão do Tribunal Constitucional para concorrer; depois aceitou a decisão da Organização dos Estados Americanos para convocar novas eleições, o que evitaria a ruptura, proposta recusada pela oposição. 

Além do mais – e essa lembrança foi crucial para definir a minha resposta, caso alguém se interesse por ela  – “contragolpe” é a mesma desculpa que os defensores da ditadura militar brasileira, bolsonaristas incluídos, dão para a quartelada de 1964 – e isso deveria causar arrepios a qualquer democrata.

Portanto, Magnoli me convenceu. Foi golpe. 

PS. Para prestar atenção: recentemente Olavo de Carvalho, o “guru” da família Bolsonaro anunciou um curso de filosofia online, que será oferecido gratuitamente a policiais brasileiros.

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