Minhas obras podem ser consideradas como estações de minha vida; constituem a expressão mesma do meu desenvolvimento interior, pois consagrar-se aos conteúdos do inconsciente forma o homem e determina sua evolução, sua metamorfose. Minha vida é minha ação, meu trabalho consagrado ao espírito é minha vida; seria impossível separar um do outro. Todos os meus escritos são, de certa forma, tarefas que me foram impostas de dentro. Nasceram sob a pressão de um destino. O que escrevi transbordou de minha interioridade. Cedi a palavra ao espírito que me agitava.

Carl Gustav Jung

[Memórias, Sonhos, Reflexões. Reunidas e editadas por Aniela Jaffé. Trad. de Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d, p. 194]

 

A primeira vez que ouvi alguém falar em Jung foi em 1976, quando tinha quinze anos de idade e residia ainda em Massapê. Um amigo que já não se encontra entre nós, Mário Cunha, mostrou-me uma pequena biografia de Jung escrita pela Dra. Nise da Silveira. O exemplar pertencia ao seu irmão, José Auri.  Aquele livro de capa amarela nunca me saiu da memória. Somente há uns dois anos consegui adquirir um para mim, encontrado em um sebo.

Sem que eu o soubesse, naquela ocasião, ainda na minha adolescência, me era apresentada uma figura que estava fadada a desempenhar importante papel futuramente em minha vida. Ao iniciar o curso de psicologia, Jung seria um dos primeiros teóricos a despertar meu interesse. Apesar do reconhecimento que tenho pela genialidade de Freud, seria Jung o teórico que eu tomaria como referência a partir do início dos anos oitenta, retornando sempre às suas obras, a partir de então, a intervalos mais ou menos regulares.

Jung nasceu na Suíça em 1875 e faleceu em 1961, ano do meu nascimento. A primeira descoberta do valor da obra junguiana me veio com a leitura de sua autobiografia, “Memória, Sonhos e Reflexões”, em 1982. A leitura desse livro me impressionou muito, provocando-me profundas transformações. Ao longo das duas décadas seguintes eu retornaria sempre a ele. Tenho comigo dois exemplares do mesmo livro. O primeiro está tão deteriorado pelos constantes manuseios, anotações e grifos, que senti a necessidade de adquirir um segundo exemplar.  

O que me fascina e atrai em Jung é a imbricação perfeita e completa entre sua vida e obra, não se podendo considerar uma separada da outra. Jung teve o privilégio de conseguir transformar os aspectos mais singulares de sua vida em teoria. Ao teorizar sobre alguns acontecimentos e hábitos, muitas vezes insólitos, Jung conseguiu atribuir um sentido ao que, do contrário, poderia tê-lo feito resvalar não apenas para a neurose, mas até mesmo para uma possível psicose.

Ele se permitiu ousar. Mas não se permitiu ousar apenas teoricamente. Ele ousou na própria vida. Não hesitou em pôr em risco sua idoneidade como cientista e terapeuta. Conferiu um valor todo especial a assuntos tidos como carentes de valor científico ou acadêmico, como, por exemplo, a astrologia e o tarô. Também não se furtou ao fascínio pelo I Ching, o milenar oráculo chinês, à época ainda inexplorado pelos ocidentais.

Ele fez de tudo: consultou o I Ching e o Tarô, fez mapas astrais, vasculhou os símbolos esotéricos da alquimia, dialogou com espíritos, se arriscou pelos meandros obscuros da ufologia, dedicou-se ao estudo de antigas religiões, se aventurou entre os índios pueblos e aportou na Índia para conhecer, in loco, suas milenares tradições religiosas. Consta que, quando de sua morte, aos 86 anos, estava em andamento a leitura que vinha fazendo do “Livro tibetano dos Mortos”.

É isso o que faz de mim um eterno apaixonado por esse Mestre que tomei como exemplo a ser seguido: sua coragem em dar vazão às suas curiosidades e fantasias. E, a par disso, a grande capacidade de transformar toda essa miscelânea em teoria passível de ser estudada por outros que resolvam seguir-lhe as pegadas.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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