A obra de Rainer Maria Rilke capturou a imaginação de músicos, filósofos, artistas, escritores e amantes da poesia, e estendeu o alcance da poesia a pessoas raramente interessadas em elocuções humanas versificadas. Marlene Dietrich, Martin Heidegger e Warren Zevon recitavam de cor poemas de Rilke. Essa capacidade das palavras de Rilke de tocar de pessoas tão diferentes como se cada palavra tivesse sido escrita só para elas, à parte sua estima entre  colegas  poetas e acadêmicos, confere à sua poesia a força que ela tem e impediu sua obra de se tornar um mero artefato da civilização que Hegel foi o primeiro a chamar de Velha Europa. O poder dos escritos de Rilke resulta de sua habilidade em entrelaçar a descrição de objetos cotidianos, sentimentos minuciosos, pequenos gestos e coisas desprezadas – aquilo que constitui o mundo para cada um de nós – com temas transcendentes. Ao entrelaçar o cotidiano e o transcendente, Rilke insinua em sua poesia – e explica minuciosamente em suas cartas – que a chave para os segredos de nossa existência pode ser encontrada bem diante de nossos olhos. Essa insinuação não é domínio exclusivo da obra poética de Rilke, que abrange 11 coletâneas publicadas antes de sua morte, em 1926, e um grande número de poemas publicados postumamente. Ele foi um epistológrafo prodigioso, e em sua correspondência espantosamente vasta Rilke se solta das coerções do verso alemão para produzir reflexões contundentes e acessíveis sobre um amplo espectro de tópicos.

Ulrich Baer

[Baer, Ulrich. Introdução a Rilke, Rainer Maria. Cartas do poeta sobre a vida: a sabedoria de Rilke. Organização Ulrich Baer; tradução Milton Camargo Mota. – São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 10. – (Coleção Prosa)]

Aprendi a gostar de Rainer Maria Rilke (Praga, 1875-1926) desde que li suas Elegias de Duíno, ainda na década de 90. Agora me cai às mãos o livro organizado por Ulrich Baer, Cartas do poeta sobre a vida. A descoberta desse livro, publicado no Brasil em 2007 mas somente agora adquirido, pois eu nem sabia de sua existência, me chega num momento muito oportuno. Aliás, devo dizer que, para quem tem para com os livros uma relação da natureza da que eu tenho, a maioria deles chegam no momento mais oportuno, quando mais necessito de sua leitura.

Pois bem, como ia dizendo, ele me chega num momento muito oportuno. Isso porque, tendo durante quase a vida inteira me dedicado à busca da transcendência, sempre calcado no pressuposto de que ela teria que se dar necessariamente por uma intervenção sobrenatural ou por um contato com o Sagrado, sempre considerado uma dimensão além dessa em que estamos imersos, começo a concluir que talvez essa perspectiva esteja equivocada – ou, pelo menos, parcialmente equivocada.

A transcendência acontece é no dia a dia, no contato direto com as coisas simples e triviais do cotidiano, com aquilo que faz a vida de cada um de nós. O Sagrado se encontra é aqui mesmo, e pode ser descoberto e vivenciado nas ocasiões mais corriqueiras e nos fatos mais triviais e simplórios da vida.

Existirá algo de maior transcendência ou sacralidade do que uma relação de amizade sincera, onde o que pode haver de mais sagrado se manifesta a todo instante, como a escuta atenta e a ajuda necessária, capazes de produzir os milagres mais prodigiosos na vida de uma pessoa em momentos de dificuldade e aflição?

Aqueles momentos em que tudo parecia perdido e a vida se transformara num inexorável beco sem saída, aí aparece o amigo, aquele amigo, que nos estende a mão ou nos oferece o ouvido para uma escuta silenciosa, e a partir daí, tudo começa a se tornar mais claro, a se desanuviar. Nessas ocasiões um milagre se fez, e a gente nem percebe, nem se dá conta.

Mas o sagrado e o transcendente não transparecem apenas nas relações com as pessoas. Ele está também na natureza, nos objetos, nos pequenos acontecimentos, no prato de sopa. A propósito, faço aqui um parêntesis para relatar um episódio da vida de Santa Teresa d´Ávila, muito comentado, do qual lembrei agora. Contam seus biógrafos que certa ocasião uma noviça lhe perguntou: “Mestra, o que devo fazer para ser santa?” Ao que ela respondeu: “Se estás a comer galinha, coma galinha”. Conheço há mais de duas décadas esse relato, mas somente agora começo a perceber a profundidade – e a veracidade – das palavras da Mestra.

É, pois, do trivial, do cotidiano, que fala Rilke em suas cartas. Rilke foi um grande missivista. Escreveu quase onze mil cartas. Tenho uma predileção toda especial pela leitura de cartas e diários. Escritos sem a pretensão de serem publicados, em diários e cartas os autores se soltam mais, se permitem mais liberdade para dizer o que pensam, sem as amarras da sintaxe ou os cuidados com uma escrita, digamos, mais elaborada. E talvez seja exatamente por isso que nesse tipo de escrito eles aparecem de corpo inteiro, despidos mesmo.

Apenas iniciei a leitura, mas sei que terei muito ainda o que falar sobre a descoberta da transcendência no cotidiano, mediado pela leitura das Cartas do poeta sobre a vida.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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