thomas_mertonDarei o que desejas. Eu te levarei para a solidão. Eu te levarei pelo caminho que talvez não compreendas, porque eu quero que seja o caminho mais rápido. (…) Não perguntes quando será, onde será ou como será: numa montanha ou numa prisão, num deserto ou num campo de concentração, num hospital ou em Gethsemani. Não importa. Por isso não me perguntes, porque não to direi. Não saberás de nada, até que estejas lá dentro.

Thomas Merton

[Merton, Thomas. A montanha dos sete patamares. Tradução de Edgar Orth. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2005, p. 380-381]

Thomas Merton foi, seguramente, um dos grandes místicos do século XX. Tendo nascido em Prades, na França, em 31 de janeiro de 1915, em uma família protestante, por livre e espontânea vontade aderiu à Igreja Católica aos 23 anos, quando pediu para ser batizado. A propósito, escreve no livro A montanha dos sete patamares, sua autobiografia, publicada dez anos depois:

Quando chegou novembro, minha cabeça só pensava numa coisa: ser batizado e entrar finalmente para a vida sobrenatural da Igreja. Apesar de todo meu estudo, leituras e conversas, eu me julgava infinitamente pobre e insignificante diante do que ia acontecer em mim. Estava prestes a desembocar na praia, ao sopé da alta montanha de sete patamares de um purgatório mais escarpado e árduo que eu poderia imaginar e não tinha a mínima idéia da subida que me restava fazer (p. 200).

Em 1941, depois de muita hesitação, resolve se tornar monge, entrando para o mosteiro trapista de Gethsemani. Nessa ocasião, ao receber a visita do amigo Bob Lax, entrega-lhe os manuscritos de seus poemas, os quais, pouco depois, são publicados, precipitando-lhe numa grande angústia, por achar que a exposição pública através da escrita punha em risco sua vocação monástica. Sobre a contradição que o dilacera, escreve:

Nesta época já devia estar livre de alguns problemas sobre minha verdadeira identidade. Já tinha feito minha profissão simples. Meus votos deviam ter-me despojado dos últimos trapos de alguma identidade especial. Mas agora havia esta sombra, este sósia, este escritor que me acompanhava para dentro do claustro. Ele está nos meus calcanhares, ele monta nos meus ombros, às vezes como o velho do mar. Não consigo me livrar dele. Usa ainda o nome de Thomas Merton. Será o nome de um inimigo? Presume-se que esteja morto. Mas está à espera e me encontra na entrada de todas as minhas orações, segue-me para dentro da igreja. Ajoelha-se comigo atrás da pilastra, o Judas, e fala-me o tempo todo ao ouvido (p. 370).

Instado, pelos seus superiores, a que continuasse escrevendo, lamenta-se, dizendo de si mesmo: É um empresário. Está cheio de idéias. Emite opiniões e traça novos esquemas. Ele gera livros no silêncio, que devem ser doces com a escuridão infinitamente produtiva da contemplação. (…) Às vezes fico mortalmente apavorado. Há dias em que parece que nada sobrou de minha vocação – de minha vocação contemplativa – a não ser poucas cinzas. E todos me dizem com absoluta calma: Tua vocação é escrever (p. 370). Apesar disso, jamais conseguiria sufocar a vocação de escritor, publicando mais de setenta livros ao longo de seus cinquenta e tr6es anos de existência. 

Merton foi, antes de tudo, um homem à frente do seu tempo. Durante cinco anos realizou encontros semanais com pastores protestantes e estudiosos judeus, antecipando-se, portanto, ao ecumenismo e ao diálogo interreligioso. Demonstrou especial interesse pelas religiões orientais, tendo lido e escrito sobre o budismo. Teve oportunidade de se encontrar pessoalmente com o Dalai Lama, encontro este que relataria em seu diário.

Em 1968 foi convidado para participar do Congresso Ecumênico que se realizaria em Bancoc, na Tailândia. Lá sua profícua vida seria interrompida drasticamente, quando, ao tentar concertar um defeito no aquecedor de seu quarto, morre eletrocutado. Contava, então, cinquenta e três anos de idade.

O que sempre me fascinou em Thomas Merton foi a coragem demonstrada em enfrentar e assumir suas contradições, em uma incessante busca que não hesitou em lançar mão do saber de outras religiões, mesmo sendo ele um monge cristão. Merton abre a sua autobiografia com as seguintes palavras: No último dia de janeiro de 1915, no signo de aquário, num ano de grande guerra, debaixo das sombras de certas montanhas francesas na fronteira com a Espanha, nasci para o mundo. Livre por natureza, à imagem de Deus, era no entanto prisioneiro da minha própria violência e do meu próprio egoísmo, à imagem do mundo em que nasci. Este mundo era a imagem do inferno, cheio de homens como eu, amando a Deus e, embora odiando-o, tinha nascido para amá-lo, mas vivia no medo e em desejos desesperadamente autocontraditórios (p. 9).

Da leitura tanto de sua autobiografia quanto de seus diários, publicados no Brasil sob o título Merton na intimidade, a impressão que me fica é de que esse grande místico que o século XX legou à humanidade não logrou sucesso em solucionar as tais autocontradições de que reclama, levando-as consigo para o túmulo.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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