69856Os cristãos, no entanto, despojaram Maria de todos os traços destruidores, perversos ou sexuais ligados às antigas divindades. Criaram um ser apagado e passivo, que irrita alguns crentes e sobretudo as feministas do século XX, como Simone de Beauvoir ou Marina Warner. Mas a imaginação dos crentes tem outros poderes criadores. Segundo as épocas, segundo os países e segundo as necessidades, eles reinventaram constantemente a imagem da personagem virtual que é a Virgem Maria.

Marie-France Boyer

[Boyer, Marie-France. Culto e imagem da Virgem. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2000, p. 13.]

O livro Culto e imagem da Virgem, de autoria da jornalista francesa Marie-France Boyer é, antes de tudo, um deleite para os olhos. Com 190 ilustrações, impresso em papel cuchê, é uma obra primorosa, como, aliás, tudo o que a editora Cosac & Naify publica. Remontando àquela que, conforme algumas tradições, teria sido supostamente a primeira imagem da Virgem, atribuída a São Lucas, a autora comenta diversas representações pictóricas da Mãe de Deus.

O texto estabelece um paralelo entre Nossa Senhora e outras imagens da Deusa-Mãe presentes em diversas civilizações, mostrando, a seguir, o quanto o cristianismo tornou unilateral a figura da Virgem Maria, ao despojá-la de atributos próprios do feminino que, no entanto, não cabem na perspectiva moralista cristã, como, por exemplo, a sexualidade. 

Escreve Marie-France Boyer: “A Virgem é aquela de quem tudo se pode esperar, sem nenhum temor. À deusa Ishtar, cujos ex-votos gravados na pedra 2500 anos antes de Cristo foram redescobertos na Babilônia, já eram pedidos filhos e riquezas. Para a Virgem convergem os mesmos desejos de fecundidade. Radiosa de felicidade na aceitação de sua animalidade humana, a Virgem-mãe – a Alma Mater – e sua ternura atraem tanto as mulheres que se identificam com ela quanto os homens que gostam de reconhecer nela sua própria mãe, na medida em que se trata de uma figura feminina despojada de todo desejo e mesmo de toda sexualidade” (p. 26).

O curioso, porém, é que mesmo com todos os esforços por parte da hierarquia da igreja no sentido de despojar a Virgem de alguns atributos considerados inaceitáveis, ainda assim, em algumas ocasiões e lugares, a contraparte humana do feminino se impôs, para consternação de não poucos que sempre se esforçaram no sentido de tornar a Virgem Maria uma figura etérea, beirando a desumanização. Um exemplo citado pela autora é o da virgo lactans, conforme o trecho a seguir:

“No entanto, a virgo lactans – a Virgem que amamenta -, bastante rara, propõe uma imagem muito diferente do corpo. Muito sensual, ela sucede, entre os coptas a partir do século IX, ao culto de Ísis, deusa negra que alimenta. Tendo os cristãos se apressado a raspar as faces internas da gruta de Belém onde Maria teria alimentado o Cristo, já no século I, na Judéia, o pó branco proveniente dessas paredes, imediatamente assimilado à idéia do leite, torna-se o centro de todas as cobiças, tanto quanto relíquias. Foi assim que três gotas de leite chegaram a Bizâncio antes de circular em toda a Europa – elas se encontram tanto em Walsingham, na Inglaterra, como nas capelas mais isoladas nos confins da Bretanha. Carlos Magno, que as conservava num medalhão com uma mecha dos cabelos da Virgem, as levava consigo quando partia para a guerra. São Bernardo, quando um dia orava diante da estátua da Virgem, teria recebido dela algumas gotas diretamente na boca. Na Idade Média, o leite, metamorfose do corpo em alimento, é a relíquia que simboliza a vida. O momento em que Fouquet decide pintar o seio exuberante de Agnès Sorel na Virgem com o Menino corresponde à interdição desse culto extravagante, que não obstante reaparecerá esporadicamente e de forma inesperada” (p. 30).

Noséc. XV, o rei Carlos VII pediu ao pintor Jean Fouquet para representar sua amante Agnès Sorel como a Virgem com o Menino. Esse quadro causou escândalo.

No séc. XV, o rei Carlos VII pediu ao pintor Jean Fouquet para representar sua amante Agnès Sorel como a Virgem com o Menino. Esse quadro causou escândalo.

 

O livro de Marie-France Boyer oferece ao leitor a possibilidade de contato com um texto de leitura agradável e elucidativa, com passagens que muitas vezes surpreendem pelas peculiaridades associadas ao culto e devoção à Virgem Maria. É, de certo modo, um contraponto a outros livros de mariologia que têm um caráter mais apologético.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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