O fato de o senhor “viver para Deus” talvez seja sua parte mais sadia – “quem está perto de mim está perto do fogo”- diz uma palavra gnóstica do Senhor. Mas onde Deus está mais próximo aí o perigo é maior. Deus quer realizar-se na chama cada vez mais alta da consciência humana. E quando esta não tem raiz na terra? Quando ela não é casa de alvenaria, onde possa morar o fogo de Deus, mas um pobre casebre de palha que queima e desaparece? Deus pôde então realizar-se? Devemos ser capazes de suportar a Deus. Esta é a tarefa maior do portador da idéia. Ele deve ser o advogado da terra. Deus cuidará de sua parte. Meu princípio íntimo é: Deus et homo. Deus precisa do ser humano para a conscientização, como precisa da limitação no espaço e no tempo. Sejamos portanto para ele limitação no espaço e no tempo, um invólucro terreno.

C. G. Jung

[Jung, C. G. Cartas: 1906-1954, Volume I. 2ª. ed. Tradução de Edgar Orth. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 80].

Em 30 de abril de 1929, Jung escreveu uma carta a um conterrâneo de apenas 19 anos, Walter Robert Corti, que posteriormente se tornaria escritor, filósofo e pedagogo. Na carta, da qual reproduzi acima um excerto, Jung trata de uma questão que sempre lhe foi muito cara, e sobre a qual fez correr muita tinta: a experiência de Deus. Embora William James tenha se dedicado a um estudo profundo e abrangente da psicologia da experiência religiosa, penso que, no que toca a este aspecto, nenhum outro estudioso se equipara a Jung. Na verdade, pode-se dizer que uma parte considerável da obra de Jung é uma tentativa de resposta à questão das possibilidades e limites da realização da experiência de Deus no homem.

Jung se colocou sempre numa perspectiva psicológica, embora, vez por outra, tenha sido interpelado por teólogos, como não poderia deixar de ser, tendo em vista a natureza dos temas sobre os quais se debruçava. Partindo do conceito de imago Dei, proposto por ele para designar a imagem de Deus que o homem faz para si mesmo, ou seja, a forma como Deus é representado na psique, interessava-lhe investigar como tal representação repercute na experiência de vida do sujeito e que rumos ele dará a tal experiência. De acordo com Jung, toda busca do indivíduo é, em última instância, uma busca de natureza religiosa. Essa busca, no entanto, está fadada a se consolidar somente na segunda metade da vida. Como se dará tal consolidação, porém, vai depender, em parte, de como foi vivida a primeira metade, bem como da resposta que ele der às indagações e inquietações experimentadas durante o transcurso de uma para a outra.

Na acepção junguiana, a vida tende para um sentido, há um projeto que todo indivíduo é chamado a realizar quando nasce. A essa grande realização, tarefa para a vida inteira, ele denominou Individuação. Esse é um conceito central em sua psicologia, talvez o mais importante, de todo o arcabouço teórico da psicologia analítica ou psicologia profunda, expressões usadas para designar a psicologia junguiana.

Ao longo da realização da Individuação – um grande processo em que estão envolvidos diversos subprocessos -, mais cedo ou mais tarde o indivíduo será, inevitavelmente, confrontado com o sagrado, com esse totalmente Outro, como o denominou Rudolf Otto ou ainda, conforme o verso de São João da Cruz, o “cautério suave”, que pode até ser suave, mas não deixa de ser cautério. A grande questão que se impõe, em última instância, é: Quem tem coragem e determinação suficientes para se deixar cauterizar?

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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