Muitas vezes até hoje tinha pegado na pena para escrever, contudo desistia, tomado pelo medo: é que sinto grande temor – peço a Deus que me perdoe, mas sinto mesmo grande temor das letras do alfabeto, pois são gênios astutos, impudentes e perigosos; se abres o tinteiro, tu as liberas e elas fogem – e, então, como subjugá-las? Animam-se, unem-se, separam-se, não dão ouvidos ao que lhes ordenas, alinham-se no papel, negras, com suas caudas e seus chifres. É em vão que apelas para elas e lhes suplicas, pois são donas de sua vontade. Dançam saltitantes, acasalam-se impudentemente diante de ti, revelam astuciosamente o que não querias confessar e recusam-se a unir aquilo que de mais profundo de teu íntimo luta para sair e falar aos homens.

Nikos Kazantzákis

[Kazantzákis, Nikos. O Pobre de Deus. Tradução Ísis Borges Belchior da Fonseca. – São Paulo: Arx, 2002, p. 20.]   

Escrever é para mim muito mais que tentação, que obrigação, que prazer, que tudo o que se possa imaginar em termos de adjetivações. Escrever para mim é um imperativo, uma necessidade quase tão vital quanto comer. Se eu não escrever, se não fizer vir a lume o que está dentro de mim em estado já fecundado e pronto para nascer eu feneço, eu não vivo. Escrever para mim é quase tão vital quanto respirar. Tenho que me conter e resistir à tentação de eliminar deste texto o quase que já usei por duas vezes. É que não quero atribuir ao ato de escrever um paroxismo tal que chegaria mesmo a aproximá-lo do mais puro viver. Mas viver sem escrever seria quase não viver, algo assim como desviver.

Então escrevo. Sucumbo ao  imperativo dos anjos e demônios tresloucados que me habitam e se agitam dentro de mim quando vem o ímpeto de dar vazão à palavra. Anjos e demônios tresloucados é o que elas são, as palavras, tão malditas quanto benditas, tão beatificantes quanto satanizantes. Ensandecidas, elas se precipitam num louco desvario. Por isso escrever é tão perigoso, se não se tem cuidado as palavras ganham vida própria e aí só Deus sabe o que pode acontecer.  

As palavras escondem, mas muito mais revelam. Elas expõem a alma de quem escreve. E aí, se não se tem cuidado, corre-se o risco de chegar a um ponto em que nada mais nos reste de nós mesmos, puro avesso revelado. Mas mesmo sabendo do perigo que corro, ainda assim escrevo, eu, que do avesso do avesso que revelo fiz minha identidade, meu modo canhestro e gauche de ser. É neste avesso que me escondo e faço da palavra a isca que vai fisgar o incauto leitor.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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