Nietzsche, é verdade, proclamou a morte dos Deuses, esperando que Foucault proclamasse a morte do homem (o que é lógico, já que o homem só se constitui como homem através de sua relação com os Deuses). Também é verdade que o cristianismo e, em certa medida, o Islã entraram em crise. É verdade, enfim, que os sociólogos não cansam de nos repisar, de umas décadas para cá, o seu processo de “secularização” (sem perceber, aliás, que estavam assim apenas retomando Hubert Spencer e os seus processos de diferenciação social: o religioso tende a se purificar de toda contaminação com aquilo que não é ele próprio).

Mas será que a morte dos Deuses instituídos acarretaria o desaparecimento da experiência instituinte do Sagrado em busca de novas formas nas quais se encarnar? Será que a crise das organizações religiosas não adviria de uma não-adequação, cruelmente vivenciada, entre as exigências da experiência religiosa pessoal e os quadros institucionais nos quais quiseram moldá-la – com vistas, muitas vezes, a retirar-lhe o seu poder explosivo, considerado perigoso para a ordem social? Finalmente, será que não estaríamos hoje assistindo entre os jovens a uma nova busca apaixonada pelo sagrado, como se os nossos contemporâneos, depois de um razoavelmente longo período de desenvolvimento do ateísmo, ou apenas de uma entrega à indiferença, estivessem outra vez se dando conta da existência, dentro de si, de um vazio espiritual a ser preenchido e constatassem, a partir dessa sensação de vazio, que uma personalidade que não se enraíza numa espécie de entusiasmo sagrado não passa, afinal, de uma personalidade castrada daquilo que constitui uma dimensão antropológica universal e constante para todo homem que vivencie a dimensão religosa?

Roger Bastide

[Bastide, Roger. O sagrado selvagem. Em: O sagrado selvagem e outros ensaios. Tradução Dorothée de Bruchard; revisão técnica Reginaldo Prandi. – São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 250.]

Em 13 de dezembro de 1973, Roger Bastide  proferiu uma conferência nas Recontres Internationales de Genève à qual deu um título que pode parecer intrigante (e, por que não dizer, instigante), “O sagrado selvagem”. No início de sua fala o grande sociólogo e antropólogo francês se refere à tão decantada morte de Deus apregoada por Nietzsche. Até aí, nada de novo. A surpresa, no entanto, fica por conta da constatação do autor de que, mesmo considerando-se que a tal morte de Deus expresse uma verdade sobre o homem contemporâneo, nem por isso feneceu nesse mesmo homem o anseio pela experiência do sagrado. Isso porque tal anseio estaria profundamente arraigado no ser humano, constituindo mesmo uma dimensão antropológica universal,

Lendo o inspirado texto de Bastide, não posso deixar de reparar na veemência com que as pessoas têm buscado se reaproximar do sagrado, o que pode ser facilmente constatado pela proliferação de publicações versando sobre esoterismo, mitologia, religiões orientais, xamanismo e tantas outras formas de manifestação do sagrado. Pode-se afirmar que uma verdadeira maré de misticismo vem grassando nos mais diversos países nas últimas quatro ou cinco décadas.

Note-se que a conferência de Bastide data do início dos anos setenta. Já naquela época esse incremento da busca por tudo o que pudesse servir como aproximação do sagrado se fazia notar. Quasee quatro décadas depois, tal anseio só tem aumentado, e como tem aumentado! Causa estupefação a variedade de novidades oferecidas, tratadas como mercadorias por este que se tornou para não poucas pessoas um mercado altamente rentável e lucrativo. A  comercialização do sagrado é um fato, e os workshops de fim de semana se sucedem, compondo um alucinante catálogo de gurus e mestres nem sempre os mais idôneos, oferecendo a preços módicos a possibilidade de atingir a transcendência sem maiores esforços.

Não resta dúvida de que a resposta para a indagação de Roger Bastide se não estaríamos assistindo a uma nova busca apaixonada pelo sagrado é positiva, e hoje com muito mais convicção se pode afirmá-lo do que há 37 anos, quando o antropólogo formulou a questão. Um aspecto, porém, dessa busca, me entristece: refiro-me ao risco de tornar superficial e rasteiro algo de tanta magnitude quanto o sagrado. Esse risco deve ser creditado à  forma superficial com que tantas dimensões sérias da experiência humana são tratadas na nossa pós-modernidade, numa sociedade em que se quer os fins mas se recusa os meios, esquecendo-se, no caso da experiência do sagrado, que, nesse caso, se trata sobretudo de um processo que demanda tempo e investimento integral do indivíduo.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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