Muitas vezes, com os lábios imóveis, ruminava (cf. Ct 7,9) interiormente e, arrastando para o interior as realidades exteriores, elevava o espírito às superiores. Assim, totalmente transformado não só em orante, mas em oração, dirigia toda a atenção e todo o afeto a uma única coisa que pedia ao Senhor (cf. Sl 26,4). – De quanta suavidade crês que ele estava repleto nestas coisas? Ele o soube (cf. Jó 28,23), eu, pelo contrário, apenas admiro. Ao que faz a experiência é dado conhecer, aos que não experimentam não se concede.

Frei Tomás de Celano

[Frei Tomás de Celano. Segunda vida de São Francisco. Em: Fontes Franciscanas e Clarianas. Apresentação Sergio M. Dal Moro; tradução Celso Márcio Teixeira… [et. al.]. 2ª. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p. 361.]  

O frade franciscano Tomás de Celano, que conheceu São Francisco em vida e com ele conviveu, na segunda biografia do poverello de Assis por ele escrita, discorre poeticamente ao longo de sete capítulos (Cap. LXI a LXVII) sobre a prática da oração por seu mestre. No início do primeiro capítulo em que trata do assunto, escreve: “Francisco, o homem de Deus (cf. 1Sm 2,27), corporalmente distante do Senhor (cf. 2Cor 5,5), lutava para manter o espírito presente (cf. 1Cor 5,3) no céu; e, já feito concidadão dos anjos, somente a parede da carne o separava. Toda a sua alma tinha sede do (cf. Sl 62,2) seu Cristo, ele lhe dedicava não só todo o coração, mas também todo o corpo” (p. 360).

Lendo o relato de Celano, tem-se uma idéia do grau de interiorização de que São Francisco era capaz quando se postava em oração, a ponto de se tornar alheio ao que acontecia exteriormente. Um aspecto, porém, que eu gostaria de destacar aqui dentre os muitos que sobressaem na biografia do santo diz respeito ao poder transformador da oração. Na verdade, para usar um vocábulo mais adequado à idéia que quero desenvolver, eu preferiria falar não do aspecto transformador, mas transmutador, da oração. Penso que transmutação expressa melhor a transformação radical que a oração pode operar em alguém. Transmutar, penso, é mais que transformar, é tornar outro.

No caso de São Francisco, pela prática contínua e intensa da oração ele se torna radicalmente outro. Essa transmutação, porém, demanda um grande empenho, tarefa que poucas pessoas conseguem levar a efeito. Quando se fala em orar, de um modo geral a idéia que se tem é de alguém murmurando preces. A oração, porém, tem muitos níveis, sendo o ato de murmurar preces apenas um deles, provavelmente o mais superficial. Diversos santos e místicos que escreveram sobre o tema, como, por exemplo, o carmelita São João da Cruz, doutor da Igreja, são unânimes em afirmar que um dos efeitos da prática intensa da oração é a transformação do orante em contemplativo. Na verdade, a contemplação é também uma forma de oração, mas já num nível muito mais profundo do que aquele que se contenta com o murmurar preces.

Atingido o nível da contemplação, opera-se, então, a grande transmutação na pessoa do orante. Isso se dá pela transformação não mais apenas do espírito ou da mente, pois estes já atingiram o nível de quietude e comunhão necessários,  mas da própria materialidade da carne, num estágio em que o próprio corpo se faz oração. Essa etapa constitui a epítome da oração, estágio esse atingido apenas pelos grandes iluminados, como São Francisco de Assis. É o que leva Tomás de Celano a se referir ao seu biografado como alguém “totalmente transformado não só em orante, mas em oração”.

Mas isso, como o dirá também o biógrafo do santo, só é dado conhecer aos eleitos – aqueles que aceitaram o desafio de percorrer a longa, difícil e trabalhosa jornada rumo à identificação mística com o Mestre, no caso, Cristo.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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