Mentir é querer passar pelo que não se é. Mas passar por outro do que não se é – sem o querer – não é mentir. É levar ao engano. O que distingue o mentiroso daquele que leva ao engano, é que todo mentiroso tem a intenção de enganar – mesmo que não se chegue a crer nele. Ao passo que levar ao engano, necessariamente, é algo impossível de não se dar. O fato acontece mesmo.

Santo Agostinho

[Santo Agostinho. A verdadeira religião; O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis Oliveira. –  São Paulo: Paulus, 2002, p. 87. (Patrística; 19)]

A grande pergunta, talvez a maior, a grande pergunta que uma pessoa possa fazer a si mesma, da qual decorrem todas as demais, é, desgraçadamente, uma indagação fadada, desde o momento em que é formulada, a não ser nunca totalmente respondida: Quem sou eu?

Ainda assim, todos nós temos  obrigação de procurar a resposta. É que dela depende os rumos que cada um dará à sua vida. Como a resposta é sempre parcial, sempre incompleta, evidentemente o tal rumo, decorrente dela, será também sempre mais ou menos incerto. Por isso seguimos às apalpadelas, tateando, agindo como se seguíssemos o rumo certo sem nunca estar absolutamente convictos de que o fazemos, de fato.

A propósito, é interessante a assertiva de Santo Agostinho, aqui citada em epígrafe, em que trata do assunto. Mesmo não tendo muita certeza quanto à sua verdadeira identidade, ainda assim é mais fácil saber o que não somos do que o que verdadeiramente somos. Nesse sentido, uma pessoa pode deliberadamente se fazer passar por aquilo que não é, uma vez que tem a plena consciência (uso aqui essa expressão com restrições, mas vamos lá!) disso, ou seja, do que ela não é. Assim procedendo, ela estará propositalmente mentindo.

Mas, será que a questão pode ser resolvida de forma assim tão simples? Provavelmente, não. Mesmo saber aquilo que não somos, é, não araras vezes, bastante difícil. Depois de tudo o que Freud descobriu sobre o inconsciente e suas insuspeitadas artimanhas, fica muito difícil falar da possibilidade de um conhecimento pleno da própria identidade. Isso posto, torna-se difícil tanto afirmar o que somos quanto o que não somos.

Essa conclusão, porém, não deve ser motivo para desistirmos de buscar ir ao âmago de nós mesmos, à procura do conhecimento da nossa verdadeira identidade. Embora seja essa uma busca parcialmente fada ao insucesso, não desistamos. É sempre possível avançar no conhecimento de si, e chegar, ainda que apenas parcialmente, a uma relativa consciência da própria identidade.

Isso é possível porque, o tempo todo, sem que o percebamos, aquilo que somos em essência se imiscui no dia-a-dia, nas atividades, nos atos, nas conversas, nos encontros, em tudo, enfim, que comporta e constitui uma vida.

Sempre, ou quase sempre, nos deparamos com sinais e indícios do caminho que é O NOSSO CAMINHO. É por intermédio desses indícios, e principalmente pelo caminho trilhado, que a verdadeira, a autêntica identidade de cada um de nós vai se revelando. Uma peculiaridade que vale lembrar aqui é que o ato de caminhar e o desvelamento da identidade vão acontecendo mais ou menos paralelamente, um alimentando e confirmando o outro.

É algo mais ou menos assim: à medida que agimos, nossa identidade vai se tornando mais clara, vai revelando seus contornos e se mostrando com mais nitidez; em contrapartida, à medida que ela vai ganhando maior nitidez, ganhamos mais autoconfiança e nos tornamos mais aptos a assumir nossas ações.

Portanto, para concluir, nunca é demais lembrar: aquele itinerário que apenas a cada um de nós compete seguir, nos é indicado em diversas ocasiões da nossa vida. Os indícios e os sinais não falham nem faltam. Percebê-los ou não, isso vai depender de o quanto estamos antenados com a nossa busca pessoal.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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