O tema mariano foi se tornando cada vez mais diversificado e complexo. As dimensões trinitária, pneumatológica, eclesiológica, antropológica; as contribuições feministas e da libertação; o diálogo ecumênico; as exigências de inculturação; a valorização da religiosidade popular; a fidelidade à reforma litúrgica; a atenção às ciências humanas; tudo isso tornou mais difícil uma releitura de Maria.

Clara Temporelli

[Temporelli, Clara. Maria, mulher de Deus e dos pobres: releitura dos dogmas marianos. 2ª ed., 2011.Tradução Maria Paula Rodrigues. – São Paulo: Paulus, 2010. – (Coleção Temas marianos), p. 5.]

Qualquer aproximação a um conhecimento melhor da figura de Maria passa, necessariamente, por um exame dos dogmas marianos. Maria não seria o que é, seja no aspecto teológico, seja no antropológico, não fossem os quatro importantes dogmas proclamados pela Igreja ao longo de sua história. Tais dogmas reverberaram tanto do ponto de vista teológico quanto no imaginário popular, responsável maior, talvez, pela consolidação de Maria como um dos pilares da Igreja Católica.

Foram quatro os dogmas marianos proclamados pelo magistério eclesial: 1. Maria Theotokos – “Mãe de Deus” (Concílio de Éfeso, 431, DS 251); 2. Aeiparthenos – “sempre virgem” (II Concílio de Constantinopla, 552, DS 427; Sínodo de Latrão, 649, DS 503); 3. Concebida sem pecado original (Dogma da Imaculada Conceição, 1854, DS 2803); 4. a que foi levada ao céu (Dogma da Assunção, 1950, DS 3903).

É exatamente desse tema que trata o livro “Maria, mulher de Deus e dos pobres: releitura dos dogmas marianos”, de Clara Temporelli. A autora é religiosa argentina da Ordem da Companhia de Maria Nossa Senhora. Professora de Psicologia e doutora em Teologia pela Faculdade de Teologia de Catalunha na Espanha. Atualmente é provincial da Ordem da Companhia de Maria Nossa Senhora e professora de Mariologia do Curso a Distância do CEFyT de Córdoba, Espanha.

A propósito dos dogmas marianos, afirma: “Teologicamente falando, tais dogmas têm um conteúdo cristológico e antropológico. Por um lado, revela-se e pontualiza-se, por meio de Maria, uma verdade de fé acerca de Cristo, isto é, que é verdadeiro homem e nasceu de uma mãe humana, que seu nascimento corresponde a uma iniciativa divina e se realizou por meio da mulher cheia de graça por excelência. Por outro lado, Maria é símbolo da salvação final prometida a todos os seres humanos. Portanto, geralmente fala-se de Maria em sua relação com algo ou alguém” (p. 7).

Um dos grandes méritos da autora nesse livro é ter trazido os dogmas marianos para a atualidade. Numa sociedade cada vez mais laicizada e dessacralizada, torna-se difícil falar dessa temática hoje. O racionalismo barra a todo momento a possibilidade de uma aproximação do sagrado, especialmente quando se trata da controvertida questão dos dogmas proclamados pela Igreja como objetos de fé. Com perfeita clareza da complexidade do assunto que se propunha abordar, Clara Temporelli formula nas seguintes palavras o desafio que teria que enfrentar, ao redigir o livro:  

“Eis o desafio que formulamos: como estabelecer a continuidade entre Maira, a mulher histórica de Nazaré, a mãe de Jesus, e a Nossa Senhora da fé? Mulher cuja vida e mistério a Igreja e a fé dos crentes procuraram desentranhar ao longo dos séculos de cristianismo. Dito de outra forma, podemos reconhecer a mãe judia de Jesus na Virgem da dogmática eclesial? Existe real continuidade entre ambas ou não? Maria seria fruto da invenção teológica posterior ao período apostólico? Será que o magistério e a teologia católica não teriam se excedido? Não terá abusado a Igreja Católica de seu poder magisterial e dado status dogmático a contribuições teológicas questionáveis e a simples crenças dos fiéis?” (p. 251).

A propósito de tais indagações, afirma, a seguir:  “Os questionamentos são legítimos, o trabalho árduo, e o mistério às vezes parece inacessível à contemplação; outras vezes, só nos mostra pequenas frestas por onde podemos espiar” (p. 251).

Ao concluir a leitura de “Maria, mulher de Deus e dos pobres: releitura dos dogmas marianos”, fica-se com a convicção de que a autora desincumbiu com brilhantismo a difícil tarefa que propôs a si mesma. O seu livro é, inegavelmente, uma dessas “pequenas frestas por onde podemos espiar” a controvertida questão dos dogmas marianos, proporcionando-nos uma perspectiva ponderada e atualizada dos mesmos, em sintonia com a época que vivemos. Uma leitura indispensável para os aficionados pela mariologia.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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