Tudo soa original em Antônio Carlos Belchior. A voz de textura macia emitida com muita força e verdade. As letras embebidas de uma maturidade filosófica digna de quem fez questão de extrair da vida o máximo que ele teria para dar. Se as referências de Beatles, Bob Dylan e outros ídolos contemporâneos não são novidades, aqui elas se atravessam com o melhor do pop nordestino. Não à toa, tanta pessoalidade na obra desse cearense fez com que ele tivesse um time mais do que seleto de parceiros, alguns poucos dispostos a partilhar seu universo particular de composições.

Sem nunca perder de vista o caráter autobiográfico, em sua obra mais aclamada, o disco Alucinação, todas as 10 faixas são de próprio punho e escritas em primeira pessoa. Lançado em 1976, este trabalho mais parece um best of do cantor e compositor. Lançado no mesmo ano, o disco Falso Brilhante, de Elis Regina, já adiantava duas canções de Alucinação. Trata-se do rock Velha roupa colorida e do folk desolador Como nossos pais, esta última um clássico absoluto da Pimentinha. Revendo velhas ideias e posturas de uma geração, Belchior mostra que sempre esteve um passo à frente do seu tempo. É uma espécia de pós-hippie, pós-Geração 70, pós flower power. “A minha alucinação é suportar o dia a dia. E meu delírio é a experiência com coisas reais”, adianta o bardo na faixa título. Seja anunciando a própria sorte ou pintando um quadro em tons de cinza, Belchior é autor para ser lido e relido sem panos quentes. Sabedor do que diz, ele encerra seu Alucinação com uma mensagem: “Não tome cuidado comigo, que eu não sou perigoso: Viver é que é o grande perigo”.

Alucinação é o segundo disco de Belchior, lançado dois anos depois da estreia que levou apenas o nome do artista, mas ficou conhecido como “Mote e Glosa”, primeira música do álbum. Embora tenha feito parte do grupo que ficou conhecido como Pessoal do Ceará, o artista sobralense ficou de fora do disco Meu Corpo Minha Embalagem Todo Gasto na Viagem por que já estava mirando um trabalho próprio. Quando ele ganhou o primeiro lugar no IV Festival Universitário, em 1971, com Hora do almoço, muita gente acreditou que, enfim, havia chegado seu momento e que toda a turma iria receber a atenção que merecia.

Que nada, o caminho foi árduo ainda e Belchior só foi receber a atenção devida quando Elis se encantou com suas músicas. Com a devida atenção da mídia, ele emendou vários sucessos falando de amor e de sua visão sobre o mundo. Ganhou fama e dinheiro, até ir deixando provas de compor para lançar seguidas regravações das próprias canções. O estilo “dó de peito” de cantar de Belchior foi ficando para trás à medida que ele mesmo se afastava da música. O fim dessa história é conhecido, com um dos maiores letristas da música brasileira enrolado em dívidas, fofocas e histórias mal explicadas.

O desfecho foi dramático. No dia 30 de abril de 2017, um domingo pela manhã, Antônio Carlos Belchior foi encontrado morto na casa em que estava morando em Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul. Uma comoção tomou conta do país que, de uma hora para a outra, lembrou de um personagem que levava a vida a sério, mas estava sendo tratado como piada por uma legião de desinformados. No último ato desta divina comédia humana, Belchior manteve em alta a ironia de quem desafiava a lógica do pensamento comum para viver seu delírio. “Palavra e som são meus caminhos pra ser livre. E eu sigo, sim, faço o destino com o suor de minha mão”.

 

Faixas de Alucinação (todas compostas por Belchior):

1. Apenas Um Rapaz Latino Americano (4:17)
2. Velha Roupa Colorida (4:49)
3. Como Nossos Pais (4:39)
4. Sujeito de Sorte (3:15)
5. Como o Diabo Gosta (2:04)
6. Alucinação (4:54)
7. Não Leve Flores (4:12)
8. A Palo Seco (2:56)
9. Fotografia 3×4 (5:22)
10. Antes do Fim (0:57)

>> Não leve flores (Belchior) por Carlus Campos:

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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