756954gSe neste sonho quem sonha não sabe que o sonho do outro menino é o mesmo sonho de quem sonhou; e se não sabe que o menino sonhado é o mesmo menino que sonha; se não sabe é porque não é tempo ainda de o menino saber que Ele era antes, é agora e será para o resto do sempre depois. Ele nasceu, mas antes do antes já era; Ele morreu, mas está vivo no Depois. Tudo cabe no espaço, mas Ele passa o infinito. Nem d’Ele se diga: foi; e nem d’Ele se diga: será, que Ele é Aquele que É. Mas… 

Luís Jardim

[Jardim, Luís. Proezas do Menino Jesus. 2a. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1968, p. 84]

 É curioso observar o quanto uma frase, dita às vezes de forma até despercebida ou sem qualquer intenção, tem o poder de marcar de forma tão profunda e duradoura a mente de uma criança. Em 1972 eu cursava a terceira série do curso primário no Instituto Virgem Poderosa, em Massapê. Transcorria o mês de julho e, como estivesse de férias, aproveitei a folga das aulas para ler um livro que ganhara há pouco de uma pessoa que marcaria muito a minha infância: a professora Dúnia Carvalho. Tratava-se de um livro infantil, de autoria de Luís Jardim, intitulado Proezas do Menino Jesus.

Esse livro foi um marco na minha infância, e não hesito em confessar que ainda hoje, já adulto, retorno vez por outra a ele na tentativa de solucionar um enigma proposto em suas páginas e que tem me acompanhado pela vida afora.  

Pois bem. Acontece que logo na primeira semana de agosto, quando da volta às aulas, durante a primeira aula de religião do semestre, nossa professora, Irmã Silveira, perguntou aos alunos: “Quem leu algum livro durante as férias?” Entusiasmado, ergui o braço e respondi eufórico: “Eu li!” Irmã Silveira indagou: “Que livro você leu?” Quando respondi que lera “Proezas do Menino Jesus”, a Irmã fez um comentário em tom de indagação que me causou a mais profunda decepção. Disse ela: “E o Menino Jesus fazia proezas?” O comentário à minha leitura parou por aí. Nunca esqueci o fato.

Muito mais marcante, porém, foi a própria leitura do livro. Isso devido especialmente a dois episódios que impressionaram sobremaneira minha mente de menino de onze anos. O primeiro se encontra narrado a partir da página 79 e tem por título: Um sonho dentro de um sonho. A singularidade do capítulo começa pelo título. Além disso, porém, a conclusão do capítulo traz um trecho que tomei como um enigma, o qual seguiu comigo pelo resto da minha infância e adolescência. Refiro-me ao trecho que pus como epígrafe a este texto. Nele, o autor se refere à figura de Cristo através de paradoxos, o qual pode ser resumido numa frase: Cristo, antes de ser, já era.

O segundo episódio está diretamente relacionado ao primeiro. Trata-se da última frase do livro, repetida pelo menino João no momento em que o Menino Jesus se despede de seus companheiros de proezas. A frase é a seguinte: “ENSAIAS AGORA, MENINO, TEUS PASSOS NA VIDA DEPOIS”. No livro, a frase está escrita assim mesmo, todas em letras maiúsculas, talvez por isso tenham causado um impacto maior ainda em mim. Ainda hoje, vez por outra pego o meu livrinho já amarfanhado pelos muitos anos de manuseio – trago-o comigo há trinta e sete anos – e releio os dois episódios mencionados, tentando entender o que tomei como um enigma para a vida – para a minha vida.

A apresentação do Proezas do Menino Jesus coube a Alceu Amoroso Lima, publicada sob o título “A carta de Alceu Amoroso Lima”. A certa altura da carta, escreve Alceu:

Acabo de ler seu poema, nesta segunda-feira de Páscoa, com o mesmo deslumbramento que os dois discípulos sentiram em Emaús, ao descobrirem, pela fração do pão, que o companheiro da estrada, com o qual foram tomar um gole na estalagem, era o próprio Jesus, que eles davam como morto para sempre, crucificado três dias antes no alto do Calvário. Mas enquanto Cleofas e o amigo descobriam, deslumbrados, naquele misterioso viajante, tudo o que as Escrituras haviam anunciado do Messias e o que ele dissera e sofrera antes de morrer na Cruz – o que seu poema admirável nos traz, pela primeira vez em tudo que a história de Deus e seu Cristo nos deram até hoje, é a antecipação daquilo que iria acontecer, quando crescesse, ao Menino chamado Jesus, do grupinho dos doze miúdos da aldeia de Nazaré. Como diz o sonho tão bonito sonhado em seu próprio sonho e repetido pelo menino João na hora da despedida: “Ensaias agora, menino, teus passos na vida depois!” (p. 10).  

Quanto ao autor do livro, segue um pequeno perfil biográfico, para os

Luís Jardim

Luís Jardim

leitores que não o conhecem. Luís Inácio de Miranda Jardim nasceu na cidade de Garanhuns, Pernambuco, a 8 de dezembro de 1901. Desenhista por vocação, em 1936 foi convidado a ir ao Rio de Janeiro expor algumas aquarelas, passando a residir nessa cidade. Começou a escrever livros infantis, recebendo, já no ano seguinte, o primeiro e o segundo prêmios no Concurso de Literatura Infantil do Ministério da Educação. Tornou-se colaborador de diversos jornais do Rio de Janeiro. Foi, também, um dos grandes ilustradores das edições da Livraria José Olympio Editora. Faleceu no dia 1º de janeiro de 1987, no Rio de Janeiro, enquanto dormia, provavelmente sonhando um sonho dentro de um sonho.   

Para concluir, cito mais um trecho de Proezas do Menino Jesus que também deixaram na minha mente de criança a marca de uma verdade, levada comigo para a vida adulta: Era o dia 25 de dezembro, dia do aniversário dele, mas de que ano foi ele não sabia. Nesse dito sonho dele havia um menino sonhando que queria ver e sentir coisas bonitas, como se fossem do céu. Aí apareceu um anjo, o mais bonito da corte celestial, e para o menino declarou: Quem pensar com fé em Deus, o que estiver no pensamento passa a ser de verdade, se o pensamento for bom (p. 80).

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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