Texto do Gabriel Avila, do Omelete, sobre “O Legado de Júpiter”, a nova série da Netflix sobre super-heróis heterodoxos. E não, infelizmente ainda não há data de estreia definida:

Durante sua carreira, Mark Millar se mostrou um dos mais prolíficos quadrinistas de sua geração. Conhecido por histórias icônicas e empolgantes que chacoalham o status-quo, suas tramas constantemente ultrapassam os limites das revistas e servem de base para adaptações cinematográficas. Responsável por HQs como O Velho LoganGuerra Civil Os Supremos, versão alternativa dos Vingadores que inspirou o primeiro filme da equipe no MCU, Millar se dedica também a criar quadrinhos autorais dentro de um selo próprio, o Millarworld. Em 2017, a Netflix adquiriu a linha editorial e atualmente trabalha na primeira produção: O Legado de Júpiter. Desconhecida do público em geral, o título é um interessante ponto de partida, pois utiliza um amálgama de referências da cultura pop para costurar uma trama super-heróica intrincada que discute o papel — literal e cultural — de seres poderosos na sociedade atual.

A história começa na década de 1930, quando uma expedição liderada por Sheldon Sampson, um dos protagonistas da história, embarca rumo a uma misteriosa ilha próxima da África. Chegando lá, os tripulantes ganham poderes e retornam aos Estados Unidos decididos a salvar seu país como super-heróis. Em uma carreira de combate ao crime, eles estabelecem uma vida pacífica e seus filhos colhem os frutos desse trabalho agindo como celebridades irresponsáveis. Com o enorme fardo de corresponder ao legado de seus pais, os jovens heróis vivem em uma tênue linha entre festas e assumir as rédeas do mundo em suas próprias mãos. Utilizando a cultura dos heróis como pano de fundo, o enredo bebe das mais variadas influências, de Shakespeare à Paris Hilton, para construir uma história que leva a discussão de “poderes e responsabilidades” a um novo patamar.

Escrita por Millar com desenhos de Frank QuitelyO Legado de Júpiter apresenta um conflito de gerações super-heróico. Os primeiros paladinos, representados por Utópico e seus aliados, se encaixam no arquétipo clássico dos heróis, com origem fantástica, código moral definido e um altruísmo norteado pela simples vontade de ajudar o próximo. Já seus descendentes lidam com conflitos mais atuais como o colapso de sistemas econômicos e a reflexão do quanto um super-humano pode (ou deve) se intrometer no curso da sociedade.

Essa dinâmica remete a outras obras que discutem os limites dos heróis na sociedade. Enquanto presta homenagem aos heróis clássicos como o Superman, praticamente recriado o Homem de Aço na figura do Utópico, seus filhos Brendon e Chloe encarnam versões cínicas e irresponsáveis dos combatentes, mais próximos aos pervertidos heróis de The Boys. Ao colocar gerações e visões tão diferentes em uma rota de colisão, a trama se torna envolvente ao dosar pancadaria e filosofia que unidas à reviravoltas chocantes tornam a HQ um ponto fora da curva nos quadrinhos modernos.

Millar, que chegou a definir a HQ como sua “história de super-heróis definitiva”, incorporou diversas influências enquanto criava o enredo. Enquanto algumas são mais superficiais, como a região em que os heróis ganham seus poderes ser baseada na Ilha da Caveira de King Kong, momentos chave da história ecoam enredos clássicos como Hamlet, de Shakespeare. Essa mistura não só enriquece a trama, como cria camadas que tornam a história memorável e reflexiva. Em questão de páginas um dos mocinhos pode se tornar o mais terrível dos vilões ao mesmo tempo em que uma inesperada figura inconsequente pode embarcar em uma jornada de redenção fascinante.

Nas HQs, O Legado de Júpiter é uma HQ em dez partes — publicada no Brasil em dois encadernados — que alterna entre os anos 1930, quando os primeiros heróis descobrem seus poderes, e 2013, quando seus filhos despontam como celebridades. Devido à natureza ágil da narrativa, a história escolhe com precisão quais eventos desenvolver e acaba deixando lacunas propositais que fazem com que o leitor ligue os acontecimentos a fim de preenchê-las. Porém, graças à transição de mídias, a série da Netflix pode completar essas lacunas e ampliar ainda mais esse rico universo.

Habituado a ver suas obras transportadas para outras mídias, visto que Kick-Ass e Kingsman se tornaram franquias cinematográficas bem-sucedidas, Mark Millar se mostrou receoso a respeito de Legado de Júpiter. O roteirista chegou a afirmar que recusou diversas ofertas para adaptar a HQ alegando que tomou tanto cuidado na criação do projeto que decidiu ter cautela para que um possível filme não o estrague. Tendo em vista que esse foi justamente o primeiro título escolhido pela Netflix dentre todo o vasto catálogo do Millarworld, a produção pode se tornar um novo marco dos super-heróis na vida real — uma tarefa cada vez mais difícil graças à enorme popularização dessa cultura nos últimos anos.

[Obrigada @especularnarrativas, ouvinte do podcast Assim Caminha a Humanidade, por nos mandar o link do Omelete!]

About the Author

Pati Rabelo

[Idealizadora do projeto multiplataforma “Assim Caminha a Humanidade” • Roteirista, pesquisadora, produtora e co-host do podcast @assim_caminha] Graduada em Comunicação Social, Pati foi editora de livros por dez anos e atualmente desenvolve projetos audiovisuais. E, entre a edição de um livro e outro, escreveu em veículos como Update Or Die, São Paulo Fashion Week (FFW), O Futuro das Coisas, O Povo online, revista PIX e Digestivo Cultural, entre outros. No ACaH, é responsável por colocar as engrenagens em movimento, fazendo conexões entre as ideias de cada episódio e gerando provocações e insights a respeito dos temas discutidos, como uma “Emília” de Monteiro Lobato. É associada da Joseph Campbell Foundation (www.jcf.org).

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