Os órfãos Baudelaire: Sunny (Presley Smith), Violet (Malina Weissman) e Klaus (Louis Hynes)

Os órfãos Baudelaire: Sunny (Presley Smith), Violet (Malina Weissman) e Klaus (Louis Hynes)

Em 2004, durante a onda de adaptações de séries de livros infanto-juvenis para o cinema após o sucesso de “Harry Potter”, uma das primeiras apostas apostas foi no sucesso da adaptação de “Desventuras em Série”, sequência de livros assinada por Lemony Snicket (Daniel Handler). Na época, 11 dos 13 romances haviam sido lançados com bom êxito junto ao público e crítica por sua combinação de suspense com um senso apurado de ironia. No filme homônimo, as três primeiras histórias dos órfãos Baudelaire foram adaptadas em cerca de 108 minutos de comédia física, exagero e, vez ou outra, doçura.

Com o timing para sequências perdidas, já que o par de protagonistas (Emily Browning e Liam Aiken) crescera, o projeto cinematográfico foi abandonado. E que bom que isso aconteceu. Com muito mais fidelidade, apuro estético e “ironia dramática”, “Desventuras em Série” virou seriado, com sua primeira temporada disponível na Netflix desde a última sexta-feira. Nela, os quatro primeiros livros de Snicket são adaptados em dois episódios cada, resultando em um ano com oito episódios de entre 40 minutos e uma hora.

Para quem assistiu ao filme de 2004, dirigido por Brad Silberling, a base da trama é a mesma, mas com muitos elementos a mais. Após um misterioso incêndio matar seus pais, os gêmeos Violet (Malina Weissman), 14 anos, Klaus (Louis Hynes), 12, e Sunny (Presley Smith), 1, são mandados para a casa de um primo distante dos pais, Conde Olaf (Neil Patrick Harris). Ator de meia tigela e vilão profissional, o novo tutor está de olho na fortuna dos Baudelaire. Só que a inventividade de Violet, o vigor para leitura de Klaus e os dentes afiados de Sunny surgem para impedir os planos sombrios de Olaf.

O temível Conde Olaf (Neil Patrick Harris)

O temível Conde Olaf (Neil Patrick Harris)

Apesar das semelhanças com o filme em seus seis primeiros episódios, a nova série chama mais atenção pelas diferenças. Se o narrador, Lemony Snicket, era quase um pretexto no cinema, na Netflix ele é mais um atuante mestre de cerimônias, brilhantemente interpretado por Patrick Warburton. É ele quem dá o tom das ironias fatais da trama e adiciona ainda uma bem trabalhada camada de transtextualidade à obra – algo já presente nos livros. É ele quem dá o tom do seriado, muito mais puxado pelo sombrio do que pelo cômico, ao contrário do filme de 2004.

Essa luta contra o excesso de comicidade já começa com a construção do Conde Olaf de Neil Patrick Harris. Se no longa a interpretação de Jim Carrey era mais centralizadora e o personagem mais bufão, dessa vez, a maldade se sobrepõe. Acessos de violência o tornam, de fato, ameaçador, ainda que idiota. Por outro lado, a personalidade e cumplicidade dos irmãos Baudelaire é muito mais protagonista do que os atos de vilania do antagonista. Mais que isso, o texto inteligente, com metáforas bem encaixadas e trechos sublinhados por uma narração bem construída fazem da adaptação uma obra impressionantemente equilibrada. Mesmo as quebras de quarta parede, feitas por Snicket e Olaf, aparecem bem orgânicas.

O narrador-personagem Lemony Snicket (Patrick Warburton)

O narrador-personagem Lemony Snicket (Patrick Warburton)

O grande protagonista da série, no entanto, é o suspense. Um sem número de perguntas sem resposta sobre organizações secretas e sobre o passado dos patriarcas Baudelaire impulsionam “Desventuras em Série”. Paralelamente e já no piloto da série, a trama de fuga do Pai (Will Arnett) e da Mãe (Cobie Smulders) mantém um fio de esperança constante – que supera até os avisos mórbidos e pessimistas de Lemony Snicket. É um jogo constante de torcida e desespero, de suspense e humor, de violência e leveza que dão vazão a várias formas de se encarar a trama.

Por mais estilizada que a série seja, ela não doura a pílula no suspense sombrio. Existem mortes, mutilações e muita tensão ali. É tudo tratada de forma quase cartunesca (no episódio 7 isso fica bem claro), mas ainda assim o sentimento é explorado. “Desventuras em Série” começa bem na sua primeira de três temporadas. Abre bem o caminho e mantém o público ansioso por novas desventuras. O desafio é que, ao final do trio de anos, as perguntas dos fãs sejam, finalmente, respondidas de forma convincente. Se a série terminar como um “Lost” infanto-juvenil será bem frustrante – mas dá para curtir a viagem até lá.

Ficha técnica
Desventuras em Série
(A Series of Unfortunate Events, EUA, 2017). 8 episódios de 45 minutos.

About the Author

André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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