Quem olha e quem é observado em “O Ornitólogo”?

Existem limites na percepção de cada pessoa. Não só por uma questão de sensibilidade, mas de vivências, disposições, quereres. A arte, pautada no olhar e na identificação, vibra ao estender essas fronteiras do que se entende. Dito isto, é natural ter repulsa por “O Ornitólogo”, do português João Pedro Rodrigues. Surrealista, antinarrativo, antinaturalista, a produção franco-luso-brasileira é uma das propostas mais originais a chegar às salas de cinema em um período recente. E até por isso, uma das mais contraditórias.

Para esmiuçar esses limiares de percepção, entro na minha experiência pessoal. O primeiro atrativo é visual, com uma direção de fotografia bem posta, recheada de uma câmera subjetiva e que joga olhares animais e humanos uns contra os outros. Em seguida, há um interesse sexual, que perpassa um roteiro construído entre relações homossexuais e perversões. De cara, desperta-se um interesse na narrativa. Só que João Pedro prefere dar uma guinada e apostar em um desenrolar mais a Buñuel do que a Truffaut, ícones do surrealismo e do cinema narrativo, respectivamente. A proposta de roteiro faz uma curva brusca para o surreal e se perde em diálogos sem conteúdo, declamados de forma pouco natural.

Do bíblico ao profano, o filme se abre para interpretações antagônicas

Ao fim dos 117 minutos de “O Ornitólogo”, me veio uma sensação ruim. Dez minutos de pensamento livre depois, o filme se dissolvia e ganhava significados, interpretações próprias minhas. Fernando (Paul Hamy) é um ornitólogo, o que significa que ele observa pássaros em seus habitats. O olhar do ornitólogo modifica quem os animais são? Aos poucos, o observador começa a ser observado. De alvos, os pássaros se fazem algozes, com olhos bem mais perscrutadores. A partir daí, Fernando começa uma transformação, uma espécie de achatamento do tempo que o une a memórias de séculos anteriores.

Nessa viagem, ele é raptado por um casal de chinesas católicas e lésbicas, se depara com amazonas, salva vidas de animais, perde a própria identidade. Ali, se mostram signos de Santo Antônio, nascido em Lisboa (Portugal) no século XII, morto em Pádua (Itália) no século XIII. Religião é uma base forte de interpretação da obra, mas isso pouco precisa importar. “O Ornitólogo” visa se desdobrar a cada mente, ser apossada por cada espectador de forma única. A mim, a religião é tema distante.

Se nada mais fizer sentido, o cenário estonteante consegue distrair um pouco do caos

O que me pega é a possibilidade de uma obra se desdobrar em tantas, todas únicas. João Pedro parte para uma abordagem fenomenológica, uma noção de consciência subjetiva. O sujeito e o meio são partes da mesma cadeia e, assim, se transformam. “O Ornitólogo”, da forma como senti dias depois, é um filme sobre olhar. A interpretação própria que João Pedro Rodrigues tinha ao filmar é de pouco interesse. Muito mais forte, para mim, é a forma como eu me aposso da obra. E, para você, deve valer o mesmo. Melhor do que o que eu senti, o que o diretor sentiu, é o que você sentiu: seja deleite ou repulsa.

“O Ornitólogo” pode ser uma obra bastante hermética, “para crítico ver”. E é. Ela pede muito e não parece dar nada em troca. Mas há ali uma provocação muito maior do que o cinema narrativo – e mesmo o autoral independente – se presam a fazer.

O melhor de tudo é que é possível que nada dessa interpretação tenha sido projetada por João Pedro Rodrigues e isso seja um delírio meu. Porque, no fim das contas, não importa qual era o objetivo. O ponto central é que “O Ornitólogo” me impulsionou a pensar, continuar pensando, e chegar a um lugar que eu não sabia que existia antes.

(andrebloc@opovo.com.br)

Cotação: nota 7/8.

Ficha técnica
O Ornitólogo (POR/FRA/BRA, 2016), de João Pedro Rodrigues.

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André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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