De um lado, “O Rastro” propõe um thriller onde a corrupção é a vilã – num timing perfeito para a política brasileira. Do outro, uma viagem fantasmagórica de horror sobre culpa. Em teoria, dois vieses originais e interessantes para uma obra. Na prática, a falta de equilíbrio entre um e outro gêneros acaba desperdiçando uma boa proposta de longa metragem.

O filme é protagonizado por Rafael Cardoso e Leandra Leal

O filme, dirigido por J.C. Feyer, começa bem, com um conflito bem construído. O jovem médico João (Rafael Cardoso) coordena a transferência de pacientes do hospital São Tomé, que será fechado pelo governo do Rio de Janeiro em breve. Quem resiste ao processo é Heitor (Jonas Bloch), mentor de João e diretor do local. Ainda assim, na surdina, a operação é feita e 42 pacientes são transferidos para outra unidade. O problema é que na tarde anterior João conhecera a pequena Júlia (Natália Maciel Guedes), de 10 anos, a 43ª paciente do hospital e que sumiu misteriosamente.

O roteiro, de Beatriz Manella e André Pereira, constrói bem o entorno de João e dos conflitos que viriam. Ele em breve será pai pela primeira vez e tem uma preocupação constante com Leila (Leandra Leal), sua esposa. Ao mesmo tempo, há a pressão do chefe de gabinete do governo estadual, Ricardo (Felipe Camargo), e do próprio governador Artur Azevedo (Domingos Montagner), que se prepara para a reeleição. A relação com Heitor também é central, principalmente pela distância entre mentor e aluno. A base sólida, no entanto, se dilui quanto J. C. Feyer aposta mais e mais no exercício de gênero.

A direção de arte imprime a identidade fantasmagórica do filme

O Brasil tem uma longa e respeitável tradição no horror. Desde o mestre máximo, José Mojica Marins, a nomes contemporâneos como Marco Dutra, Juliana Rojas e Petrus Cariry, a produção nacional sempre foi consistente, ainda que frequentemente de nicho. O problema de “O Rastro” não é investir no horror. O que incomoda é a forma precária como os fatores sobrenaturais são materializados. O medo é construído a partir da culpa dos personagens. Aparições fantasmagóricas, paredes que sangram, crianças que somem. Internamente, há um sentido claro, inteligente. Mas a forma como esse medo chega para o público beira o risível.

Em suma: “O Rastro” não dá medo. O horror do filme é ancorado em infantis sustos. A trilha sonora excessiva, tanto nos efeitos quanto na trilha musical, dá o tom “aterrorizante”. Há uma boa direção de fotografia, que podia ser o foco central da narrativa de medo. Mas o recurso fácil da música se sobrepõe aos jogos de espelho e ao visual bem pensado. Não há um limite claro entre o que é som diegético ou não. Ou seja, não sabemos o que os personagens ficcionais deveriam estar ouvindo, já que as fontes dos sons não são esclarecidas.

Outro ponto que incomoda também é a transição entre os gêneros, que soa forçadíssima. O primeiro ato aponta um thriller dramático. O segundo ato, horror fantasmagórico. Já o ato final é um suspense político. Essa confusão se insere até no elenco, já que em um ou outro momento os protagonistas e antagonistas parecem mudar. Não há muito foco, não há tanta robustez, como fora proposto. “O Rastro” aposta em conquistar um público nacional habituado ao cinema de horror, mas que costuma consumir apenas o enlatado norte-americano. Válido. Só faltou acertar o tom. O que mais frustra é que há ali qualidade, mas que se dissipa na indecisão do ritmo.

(andrebloc@opovo.com.br)

Cotação: nota 4/8.

Ficha técnica
O Rastro (BRA, 2016), de J. C. Feyer. Horror/Suspense. 90 minutos. Com Rafael Cardoso e Leandra Leal

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André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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