Entre os diversos fatores que transformam o português numa língua tão difícil como fascinante, a existência de seis tempos verbais é um dos principais. Entre os não latinos, o maior desafio é o “Futuro do Préterito”, esse tempo verbal que surge paradoxal no próprio nome. Agora imagine que você é uma jovem chinesa de 18 anos e que acaba de se mudar para Buenos Aires, na Argentina. Entre tantos desafios, aprender uma nova língua parece obstáculo pequeno.

Xiaobin e Vijay: chinesa e indiano

Em espanhol, o modo indicativo se subdivide em nove tempos. Um deles, o “Futuro Perfecto”, serve para estabelecer uma ação futura que terminada antes de outra ação futura. Trocando em miúdos, é algo como: “quando você terminar de ler a crítica, você terá se sentido confuso”. “O Futuro Perfeito”, da alemã Nele Wohlatz, é um curioso passeio por esse futuro que vivemos antes de um verdadeiro futuro se estabelecer. No filme argentino, Xiaobin (Xiaobin Zhang) tenta se adaptar à cultura de seu novo país enquanto luta contra as amarras da própria cultura.

A chave para tudo isso é a linguagem. Baseado no relato real da atriz protagonista, o longa propõe uma imersão em uma realidade extremamente confusa. Não por acaso, “O Futuro Perfeito” é dirigido por uma alemã e protagonizado por uma chinesa. As regras próprias de uma língua acabam estabelecendo uma lógica, uma forma de o filme respirar. Línguas latinas, português, espanhol, francês, tem tempos compostos de futuro e que propõe conjecturas. Se para nós já é confuso, imagine para alguém sem a mesma base.

Partindo da escola de idiomas, o filme aposta no antinaturalismo

Um dos recursos mais curiosos da direção de Wohlatz é apostar em uma espécie de atuação antinaturalista falsa dentro de uma obra semidocumental – ou seja, calcada na realidade. Existe uma explicação diegética explicitada desde a primeira cena e validada por qualquer estudante de língua estrangeira. O que se vê ali é uma pantomima, uma forçação de intimidade entre os personagens, algo que se vê sempre em cursos de idiomas. Assim, Wohlatz consegue construir uma relação completamente irreal entre a garota chinesa Xiaobin (ou Beatriz, como adota no país estrangeiro) e o indiano Vijay (Saroj Kumar Malik). Nenhum dos dois tem a base de pensamento do outro, algo próprio de um idioma. As conversas são feitas em uma terceira língua, que nenhum nem outro dominam.

Com agilidade e uma minutagem bem baixa (65 minutos), “O Futuro Perfeito” nunca deixa de ser agradável. Há ali uma proposta de mergulho cultural, algo a que Xiaobin se dedicou. A proximidade entre o português e o espanhol é um fator que aproxima a obra de nossas vidas, apesar de que o conflito soa mais distante. Mas imagine você, brasileiro, vivendo na China sem falar mandarim. Namorando um russo que arranha um pouco da língua dos chineses. Com uma família profundamente enraizada na cultura latina, mas que se contorciona para buscar uma vida melhor. Talvez assim, perdido, fique mais fácil se projetar um futuro como os que Xiaobin envisione.

(andrebloc@opovo.com.br)

Cotação: nota 6/8.

Ficha técnica
O Futuro Perfeito
(El Futuro Perfecto, ARG, 2016), de Nele Wohlatz. Drama. 65 minutos.

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André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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