A lista dos primeiros 11 filmes da Pixar é absolutamente irrepreensível. “Toy Story” (1995), “Vida de Inseto” (1998), “Toy Story 2” (1999), “Mostros S/A” (2001), “Procurando Nemo” (2003), “Os Incríveis” (2004), “Carros” (2006), “Ratatouille” (2007), “WALL-E” (2008), “Up – Altas Aventuras” (2009) e “Toy Story 3” (2010) formaram o credo moderno da animação. Por conta disso, “Carros 2” (2011) virou um marco: foi o primeiro filme decepcionante da então infalível Pixar, a falha em um império que durava 16 anos. Passados seis anos, a trama de Relâmpago McQueen é fechada de forma bonita e generosa, oferecendo uma redenção mínima à franquia que maculou o hitórico do estúdio.

Relâmpago McQueen treina com Cruz Ramírez

Dirigido pelo estreante Brian Fee, “Carros 3” mostra o maior piloto do mundo após o fim do seu apogeu. Ídolo mundial, Relâmpago McQueen fica para trás com a chegada de uma nova e tecnológica geração de carros de corrida. Após um período sabático, ele decide que quer “se aposentar nos próprios termos” e promete uma vitória para o novo dono de equipe. Para atingir o objetivo, ele se junta à treinadora/coach Cruz Ramírez e aposta em uma rotina de treino de pneus “mais sujos” do que seu novo rival tecnológico, Jackson Storm.

Com pegada mais infantil e comercial que os antecessores da Pixar, “Carros” marcou pela funcionalidade da direção de arte e a sinceridade dos sentimentos impostos. Não era um filme de agenda oculta e que discutia o papel da tristeza e o envelhecer, por exemplo. O mérito da obra foi construir um universo que, apesar de absurdo, seguia regras bem enxutas para fazer sentido. O design dos veículos é chave desse processo, com uma antropomorfização detalhada o que aproximava os carros dos humanos.

A amizade de McQueen com Doc Hudson em “Carros” (2006) dá liga ao novo filme

“Carros 3” pega este exemplo e brinca. A leveza surge, por exemplo, quando McQueen busca aconselhamento de ex-carros/pilotos de corrida em um bar num rincão desse mundo automotivo. Lá, uma banda de carros usa forquilhas para tocar instrumentos. Ao mesmo tempo, o filme trabalha metáforas para inteligentes para o envelhecimento. A tecnologia, geralmente próxima aos jovens, é mostrada como diferencial dos “carros de nova geração”. O discurso de coaching de Cruz Ramírez é outra novidade, outro ponto de encontro com a “realidade humana”. Tudo isso circunda a existência de McQueen e envelopa a pressão pela aposentadoria. “Carros 3” não reinventa a roda, apostando no convencional eficiente, mas trabalha eficientemente todo tema que propõe. Cortaram-se ainda os excessos de humor (menos Mater), o que tira “carne extra” da trama.

Para que o tal conceito funcione, no entanto, a memória de Doc Hudson, mentor de McQueen, precisa ser resgatada. O resgate ao belo personagem, dublado no longa original pelo ator e piloto Paul Newman (1925 – 2008), traz uma boa dose de saudosismo e, paralelamente, um reforço para o tema central do filme. Se em “Carros” McQueen era o arrogante e irresponsável iniciante, hoje ele se aproxima e entende melhor o ex-carro de corrida e treinador Hudson. A aproximação da trajetória dos dois vai além de um asséptico saudosismo, mas mostra um resumo do crescimento do protagonista. O ato final, construído aos poucos no roteiro, é uma generosidade que Brian Fee faz ao personagem.

O blasé Jackson Storm é o novo rival de McQueen

A chave de “Carros 3” é o entendimento de que aquele mundo competitivo é uma extensão das lógicas da realidade, digamos, humana. De certa forma, o filme é mais ousado que o longa original ao propor uma discussão sobre aposentadoria para um público majoritariamente infantil. Há ainda uma força de diversidade. Ali, todos são carros, mas a presença de um “carro de corrida-fêmea” quebra o status quo. Cruz Ramírez, mulher e latina, é não só uma potencial sucessora para a franquia, mas uma personagem que bebe do legado de Maria Teresa de Fillipis, Lella Lombardi ou Danica Patrick, mulheres que provaram que pista de corrida não é lugar só de homem.

(andrebloc@opovo.com.br)

Cotação: nota 5/8.

Ficha Técnica
Carros 3 (Cars 3, EUA, 2017), de Brian Fee. Comédia/Animação. Livre. 102 minutos.

About the Author

André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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