“Chega à choupana o campônio/ Encontra a mãezinha ajoelhada a rezar/ Rasga-lhe o peito o demônio/ Tombando a velhinha aos pés do altar/ Tira do peito sangrando/ Da velha mãezinha o pobre coração/ E volta a correr proclamando
/ “Vitória, vitória, tem minha paixão”” (Vicente Celestino, em “Coração Materno”)

Amor de mãe é um dos clichês (verdades?) mais antigos da humanidade. No mundo cristão ocidental, Maria, mãe do filho de Deus, é talvez o símbolo máximo de dedicação. No sétimo longa-metragem da carreira, Darren Aronofsky aposta no ethos religioso para traduzir um sentimento de forma surreal e abertamente imagética. Em “Mãe!”, religiosidade, amor, adoração e vaidade se misturam em um denso horror surrealista.

A casa vira uma extensão da personalidade da personagem de Jennifer Lawrence

Profundamente alegórico, o filme parte de um casal sem nome, formado pelo hospedeiro (Javier Bardem), um genial artista em bloqueio criativo, e sua esposa (Jennifer Lawrence), figura de dedicação total ao amado. Os dois vivem isolados na casa onde ele cresceu e que ela resolveu reformar nos mínimos detalhes. Logo de cara, “Mãe!” escancara sua alegoria mais óbvia, pareando o coração da moça com o pulsar figurativo do casarão. Quebrando o isolamento do casal, um velho médico (Ed Harris) aparece durante a noite e o “hospedeiro” o acolhe na própria casa, sem ouvir a opinião da esposa.

É esse silenciamento, mostrado de forma pouco discreta, que dá forma ao filme. Mesmo dentro do jogo de metáforas, a protagonista pode ser vista como todas as mulheres em busca de voz na sociedade. Ninguém a leva a sério, por mais que suas posições sejam sempre lógicas. Ela tem opiniões engolidas e as queixas são tratadas como histeria. O principal terror trabalhado no filme é a realidade de um mundo onde 50% da população precisa lutar, gritar, para ser levada a sério. Aronofsky nunca foi um diretor sutil, o que pode ser bom ou ruim. Nesse caso, ele usa a característica em favor de uma oportunidade de escancarar nosso machismo patriarcal de forma bem crua.

Só passando para lembrar que a Michelle Pfeiffer é dona de toda cena em que aparece

Aos poucos, “Mãe!” se transforma em um ensaio sobre a pulsão destrutiva do trabalho. O poeta interpretado por Javier Bardem aceita mais e mais fãs dentro de casa, em uma espécie de séquito em torno de si. A personagem de Jennifer Lawrence acaba engolida, tanto pela massa de gente quanto pelo sentimento de confusão mental. Reiteradamente, o filme mostra o fascínio do “hospedeiro” pelo status messiânico que sua obra adquire. Pregações, ídolos, signos e toda a sorte de jogos religiosos se acumulam, todas orbitando o homem. Os filhos do médico, interpretados por Domhnall e Brian Gleeson, por exemplo, são referências nada misteriosas aos trágicos irmãos bíblicos Caim e Abel.

Nesse ponto, cuidado com spoilers. Na maior tradição de apoteose de Aronofsky, a trama ganha um ritmo cada vez mais frenético no terceiro ato, quando o séquito do Homem explode em adoração. Ali, ele escancara os ideais bíblicos que guiaram o roteiro. Claro, a trama esconde alegorias, mas é bem claro que o personagem todo-poderoso de Javier Bardem é uma visão caótica do Deus cristão. Egocêntrico, cruel, machista, centralizador, mesquinho (pelo menos segundo a Bíblia), capaz de sacrificar o próprio filho por vaidade e maior extensão do seu poder. Jennifer Lawrence, como consequência, é claramente Maria, tratada como subalterna desse ser superior. A casa, um imenso útero, aproxima as referênias bíblicas e simbolismo a uma aspecto visual, palpável. Um prato cheio para o estilo apoteótico de Aronofsky.

Aos poucos, a trama vai ficando cada vez mais densa e difícil

De certa forma, “Mãe!” é tanto o mais rigoroso quanto o mais desleixado dos filmes do diretor de “Réquiem para um Sonho” (2000), “O Lutador” (2008) e “Cisne Negro” (2010). Os planos longos, a câmera próxima, os cortes precisos contrastam com o caos absoluto da trama, em especial do terceiro ato. É um caos planejado, o que não deixa de ser frustrante. Aronofsky nunca se perde e o excesso de controle não deixa o filme trabalhar mais no surrealismo do que no metafórico. Acaba que, assim, o filme empalidece frente a, por exemplo, o excepcional “O Ornitólogo” (2016), de João Pedro Rodrigues. Os dois longas trabalham temas religiosos com uma abordagem embebida de simbolismos, mas o filme português é mais generoso em seu caos particular. Aronofsky aposta excessivamente no impacto imagético, na força bruta da cor, quando podia se dobrar mais aos sentimentos, à viagem interna.

Por outro lado, “Mãe!” é um filme corajoso, se o considerarmos uma obra produzida na escala industrial hollywoodiana. É um horror que questiona o caráter messiânico das religiões ocidentais, que ataca temas atuais como violência de gênero, alienação parental, cultos a personalidades, de uma forma que foge do envelopamento de gênero (e de temas). É um impacto raro e bem-vindo para a supersaturação do cinema norte-americano. Pode não ser tão poderoso quanto os estudo-espelho que Aronofsky fez na dualidade entre o balé de “Cisne Negro” e o drama de “O Lutador”, mas é um novo, novíssimo, estudo temático e de gênero de um diretor que se permite ousar.

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(andrebloc@opovo.com.br)

O filme entra em cartaz na quinta-feira, 21 de setembro de 2017.

Cotação: nota 6/8

Ficha técnica
Mãe!
(Mother!, EUA, 2017), de Darren Aronofsky. Horror/Drama. 18 anos. 120 minutos. Com Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed Harris, Michelle Pfeiffer e Kristen Wiig.

About the Author

André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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