Harry Dean Stanton. Assim como todas as coisas do mundo, o longa “Lucky”, de John Carroll Lynch, tem começo e fim. E o nome de ambos é esse: Harry Dean Stanton. Em uma trama sobre a finitude, o veterano ator de 91 anos, no último papel da vida, dá o tom de realismo e poesia que a trama pede.
Realismo, aliás, é um dos temas da obra, como o próprio Lucky constrói após encontrar a palavra em uma cruzadinha. “A prática de aceitar uma situação como ela é e estar preparado para agir de acordo”, define o personagem, um tipo sulista norte-americano, dividido entre o bom humor e a ranzinzice.
Morador de uma pequena cidade no sul dos Estados Unidos, dessas onde todos os moradores se conhecem, Lucky é um veterano da Marinha sem família, que consegue manter a saúde com uma rotina diária bem aperfeiçoada – mas que se permite várias pausas para um cigarro. Lucky acorda de manhã e faz “21 exercícios de ioga”. Ele é querido pelo dono do café, com quem implica diariamente, e a garçonete que lhe serve com pontual esmero. Passa todo dia em uma loja de conveniência para comprar leite e cigarros e termina a noite sempre no mesmo bar. Só que um dia, Lucky desmaia ao prepara o café da manhã.
Sujeito só (“o que é diferente de ser solitário”, garante), Lucky passa, então, por um processo interno. Profundamente cético, ele não tem fé. Em seu ateísmo quase niilista, ele acredita que o fim é tudo preto e ponto final. É a desesperança final. A morte, para ele, é a negação da vida – de tudo que ele conhece, o escuro final. Aos 91 anos, o peso começa a dobrar Lucky.
Paralelamente, “Lucky” se move em diálogos. O melhor amigo do protagonista é Howard (David Lynch), que tenta superar a fuga de seu cágado, um quelônio que pode viver mais de 100 anos. Apesar da perda, Howard decide fazer um testamento deixando Presidente Roosevelt, o cágado, como seu herdeiro. Outro amigo é Paulie (James Darren), que acredita que sempre foi um nada, mas entrou em paz com o próprio espelho ao conhecer Elaine (Beth Grant), o amor da sua vida.
Assim sendo, o roteiro, de Logan Sparks e Drago Sumonja, propõe uma passeio por visões filosóficas do que é viver, refletidas na infalibilidade da morte. A constatação, encontrada com um desespero no olhar do nonagenário protagonista, é doída, mas nunca sentimental. O processo é interno e Harry Dean Stanton não ficou preso ao cansaço; ele se entregou a um papel que só alguém com 90 e poucos anos de fato conseguiria entender.
Em seu ato final, o ator de “Paris, Texas” (1984), “Coração Selvagem” (2000) “Império dos Sonhos” (2006) consegue um papel que faz jus a uma trajetória das mais ricas de Hollywood. Isso é tão mérito do ator quanto de um diretor que ousa estrear com um longa protagonizado por um eterno coadjuvante de 91 anos. É um filme sobre o futuro de quem acumula muito passado, ao ponte de já ter dificuldade de perdoar a si mesmo. É um filme sobre aceitar e sorrir para o destino, como ensinariam alguns budistas.
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Cotação: nota 6/8.
O filme entra em cartaz na quinta-feira, dia 14 de dezembro.
Ficha técnica
Lucky (EUA, 2017), de John Carroll Lynch. Drama. 88 minutos. Com Harry Dean Stanton e David Lynch.