Um certo dia, aos 14 anos, Paulo César Pinheiro se viu dividido entre o insistente convite dos amigos para o jogo de bila e a folha de papel a sua frente onde começava a rabiscar uns versos para uma melodia que o amigo João de Aquino, havia gravado numa fita. A solução foi terminar rapidamente o que estava escrevendo e correr para o meio da rua. Passada a brincadeira, voltou ao papel e viu ali a letra de Viagem. Apesar da pouca idade dos compositores, a valsa logo foi descoberta por Baden Powell e Marisa Gata Mansa.

Mas o que o fazia, nessa idade, trocar a molecagem com os amigos pela letra de uma valsa? “Isso é inexplicável”, divaga Paulo César numa bem humorada conversa por telefone. “Não sabia o que era e me deixava levar. Nem brigava contra. Nem a força da brincadeira me tirava daquilo”. Hoje, com 61 anos, ele só vê uma explicação para o que lhe acontecia na infância: a força da natureza. Mas, ali foi só o início de uma longa vida dedicada à música brasileira que ele começa a narrar em Histórias as minhas canções, lançado pela Editora Leya. O livro, com passagens autobiográficas, reúne histórias envolvendo 65 composições suas ao lado de seus diversos parceiros.

Aliás, quando o assunto é parceria, ele sabe tudo. Sua primeira noite de boemia, ainda aos 14 anos, foi ao lado de Baden Powell e terminou na manhã seguinte, emendando com o colégio. Dois anos depois, o violonista desafiou: “Ta na hora de a gente fazer alguma coisa junto”. Mostrou-lhe uma melodia com um refrão falando de um capoeirista chamado Besouro e intimou-lhe a fazer a letra. Uma semana depois, estava pronta Lapinha, que lhe rendeu o primeiro lugar na 1ª Bienal do Samba e os ciúmes de Vinicius de Moraes que se sentiu traído por Baden. Ainda assim, a parceria rendeu, entre outras, Cai dentro, Vou deitar e rolar, Falei e disse e Aviso aos navegantes, definidos pelo sambista João Nogueira, como “samba de esculachar mulher que larga o homem”.

Apesar das intenções machistas, foi Elis Regina quem deu voz a todas elas. Amiga íntima e fã do jeito brejeiro como Paulo usava as palavras, foi a Pimentinha também quem lhe deu os primeiros cutucões para que ele assumisse o microfone. “Quando eu ia mostrar alguma coisa nova, ela gostava que eu cantasse. Dizia que eu tinha um jeito interessante de cantar, de dividir. Depois que a Elis falou isso eu tirei o grilo”. O incentivo deu certo e, mesmo ainda sem se considerar um cantor, ele gravou mais dez discos e prepara para lançar mais um, com cantos de capoeira.

Em Histórias das minhas canções, Paulo César mistura casos engraçados com assuntos sérios, como seus entraves durante a ditadura. “Eu vivia censurado, tanto no Rio quanto em Brasília. Fui tanto a Brasília pra tentar passar música que hoje eu não gosto de ir lá visitar. Ficou uma impressão horrível”. Certa vez, sabendo que os censores faziam vista grossa para alguns compositores, colocou a letra de Pesadelo junto com as do novo disco de Aguinaldo Timóteo, para conseguir a liberação. Aguinaldo nunca soube, mas o plano deu certo e os versos “Você corta um verso, eu escrevo outro/ Você me prende vivo, eu escapo morto” foram gravados pelo MPB-4.

Entre histórias de alegria, tristeza, amores mal resolvidos e homenagens, Paulo César Pinheiro segue compondo e estendendo sua lista de parceiros. Avesso a computador, celular, email e outras maravilhas contemporâneas, é no escritório da sua casa, no bairro carioca das Laranjeiras, que ele continua buscando novos companheiros. “To fazendo música, agora, com os filhos dos meus antigos parceiros João Nogueira, Baden Powell, Danilo Caymmi. Meu parceiro mais novo tem 14 anos. É o filho do Maurício Carrilho, o Joaquim Carrilho. Fiquei emocionado por que eu comecei a compor nessa idade. Também componho com o meu filho Julião Rabello”, enumera. Com mais de mil músicas gravadas e outras mil inéditas, faltou estar ao lado de alguém? “Olha, fui parceiro do Pixinguinha. Estive ao lado dos melhores. Atravessei o século XX compondo com todas as gerações. Eu num sou pouca merda não”. A constatação inusitada foi só pra deixar claro que ele ainda tem fôlego para muitos anos de música. Adiantando o desejo de lançar um segundo volume para Histórias das minhas canções, Paulo César continua com papel e caneta anotando o que lhe vem à memória. “Isso não é só um relato de como nasceram as canções. É um documento de escritor. Quando forem falar de mim, não precisa ouvir de outras pessoas. Até onde eu lembrar, eu vou escrevendo”.

E mais:

> Um nome fundamental na vida de Paulo César Pinheiro foi a cantora Clara Nunes, com quem foi casado por oito anos. Foi vendo o “cantinho” onde ela guardava os santos e orixás, que ele compôs Portela na Avenida. Com a morte da sambista, em 1983, ele compôs, em sua homenagem, a canção Um ser de luz.

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=ogDBDEIKKdc&feature=related[/youtube]

> Ainda um adepto da fita cassete, Paulo César Pinheiro mantém um grande acervo de gravações inéditas, inclusive de reuniões de amigos onde sempre tinha muita música. A coleção, que ele não tem idéia do tamanho, inclui gente do quilate de Ismael Silva (14 inéditas, segundo suas contas), Sinval Silva, Cartola e Nelson Cavaquinho.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

View All Articles