Nada em Itamar Assumpção era comum. Voz grave aveludada com forte sotaque paulista, cabelos rastafári, figurino exótico, olhar desafiador por trás dos óculos escuros cheios de estilo e músicas cheias de ironia e referências. Considerado um maldito pelo caráter pouco comercial do seu trabalho, ele foi um dos principais representantes da geração conhecida como Vanguarda Paulistana. Até sua morte em 2003, vítima de um câncer no intestino, ele criou uma obra curta, intrigante e atual. Admirada por artistas como Ney Matogrosso e Zélia Duncan, esta obra está reunida na caixa batizada Caixa Preta, lançada pelo selo Sesc.

Apesar do nome, a Caixa Preta é amarela. Talvez mais uma provocação do compositor que já demonstrava o desejo de ver sua obra reunida numa caixa. Nascido em Tietê, São Paulo, em 1949, Itamar fez suas primeiras gravações em 1976, incentivado pelo maestro Rogério Duprat e lançou seu primeiro disco, Beleleu, Leléu, Eu, em 1980, quando já tinha presença garantida no pequeno teatro Lira Paulistana, acompanhado da banda Isca de Polícia. Defensor ferrenho da própria obra, Itamar tirava um sucesso do seu set list quando ouvia a plateia pedir. “Quer ouvir Nego Dito, vai pra casa e bota o disco”, respondia. Com os programadores de TV não era diferente. Na Globo, quando Augusto César Vanucci perguntava o que ele iria tocar, ouvia como resposta: “eu sou um artista. Só vou decidir na hora”.

Arisco no trato com gravadoras, Itamar lançou nove discos em vida, sete deles de forma independente. “Ele chegou a receber convite da Warner, quando surgiu a onda do Rock nacional. Mas, no final, ele não quis não”, lembra Paulo Lepetit. Amigo pessoal e músico da Isca de Polícia, Paulo foi responsável pela produção de Pretobrás III – Devia ser proibido, um dos inéditos da Caixa Preta, junto com Pretobrás II – Maldito Vírgula, produzido por Beto Villares. Ambos convidaram uma lista variada de convidados que inclui B Negão, Arnaldo Antunes, Seu Jorge e Arrigo Barnabé. Um destaque fica para a canção Elza Soares, que recebe a própria Elza emocionada. “Eu to chorando, cara”, solta ela ao fim da faixa.

Com a maior parte da obra lançada de forma independente, a Caixa Preta foi feita a partir de alguns poucos masters que existem, LPs e cassetes DAT. “O pior de achar foi o ao vivo Às próprias custas S/A. E é o melhor disco dele, na minha opinião”, conta o guitarrista da Isca de Polícia, Luiz Chagas. Segundo ele, ao ver a doença se agravando, Itamar começou a fazer gravações “adoidadamente”, o que gerou o material inédito, originalmente somente voz e violão, incluído na caixa. “Sobraram mais de 50 músicas para serem lançadas. Foi aí que o Paulinho Lepetit reuniu a banda e tocou como se fosse um disco dele”. Amansando a imagem de “difícil” de Itamar, Luiz explica que ele era avesso a formalidades. “Se você chegasse pra conversar normalmente, ele era um doce. Se se apresentasse como um jornalista do Globo, ele se portava com mau humor”, lembra entre risadas.

Mesmo difícil ou temperamental, Paulo Lepetit não esconde a admiração por Itamar Assumpção. “O trabalho dele estava sempre sendo modificado. Ele nunca estacionava. Não lembro de nunca ter feito dois shows com o mesmo arranjo”, diz Paulo. Para ele, a Caixa Preta vai ser importante para resgatar a imagem do artista ainda bem pouco conhecido. “O público que conhece o Itamar ainda é relativamente pequeno em relação à qualidade da obra. Esse buchicho que estão fazendo em torno da Caixa ta sendo importante para uma nova geração se interessar e quem já conhecia está voltando a se surpreender”. O próprio Itamar, inclusive, costumava dizer que seria como Cartola, só seria reconhecido depois de morto. Ao que parece, sua previsão foi acertada. A primeira remessa de cinco mil volumes da caixa já está esgotada e a lista de espera pela nova remessa, em andamento, já está grande.

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=bD0TnEoM4IQ[/youtube]

Também em comum com o sambista mangueirense, Itamar viveu e morreu entre muitos
aperreios financeiros. Segundo Paulo, mesmo com certo reconhecimento fora do País, principalmente, na Alemanha, o compositor vivia numa casa na Penha, longe do centro, e com dificuldades. “Mas isso era uma coisa até voluntária. Ele teve várias oportunidades de ampliar isso, mas não tinha vontade. A música dele é popular, a roupagem é que tinha um grau de dificuldade. Ele buscou isso a vida toda, quando tava ficando fácil ele complicava um pouquinho”.

Serviço:
Caixa Preta, reunindo 12 discos de Itamar Assumpção, incluindo os inéditos Pretobrás II e III, e um livreto com depoimentos de Arnaldo Antunes, Elke Maravilha, Thaíde e outros. À venda nas unidades do SESC São Paulo e na loja virtual do SESC. Preço: R$150.

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=yocvILo9hSg&feature=related[/youtube]

>> Conteúdo da Caixa Preta:
Beleléu Leléu Eu (1980)
Às próprias Custas S.A (1982)
Sampa Midnight (1983)
Intercontinental – Quem diria? Era só o que faltava (1988)
Bicho de Sete Cabeças Vol. I, II e III (1993)
Ataulfo Alves por Itamar Assumpção – Pra sempre agora (1996)
Pretobrás – Porque que eu não pensei nisso antes? (1998)
Vasconcelos e Assumpção – Isso vai dar repercussão (2004)
Pretobrás II – Maldito Vírgula (2010)
Pretobrás III – Devia ser Proibido (2010)

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

View All Articles