Amigo que é amigo de verdade, não precisa se ver todo dia. No caso de Roberto Menescal e João Gilberto, já se vão quase 50 anos desde que eles se viram a última vez. Excêntrico e recluso por opção, João Gilberto é uma presença rara, seja qual for o evento. Isso justifica em partes o distanciamento. O outro motivo foi uma opção do próprio Menescal, que num certo momento não aguentou mais as manias do companheiro.

Produtor, músico e compositor de boa parte da produção bossanovista brasileira, Roberto Menescal, 73, lembra com detalhes de cada enrascada que entrou por conta de João Gilberto. Desde passar quatro horas esperando o cantor escolher um chapéu até ter que convencê-lo a subir no palco ou dar entrevistas. Amigos na adolescência, numa época em que a Bossa ainda não passava de um murmúrio, João e Roberto viram o estilo crescer e se espalhar pelo mundo. Passados os anos e a distância, ele conserva a admiração por João e até lamenta pelo baiano ser esse mito que não dá entrevista, faz poucos shows e vem encarnando cada vez mais o posto de lenda viva. “Se fosse pro mal, O João seria um Hitler. Ele tem a força de dominar uma nação”, define Menescal. A seguir, então, um pouco da intimidade e do gênio indomável de João Gilberto.

O POVO – Pra começar, queria saber quando você ouviu o nome do João Gilberto pela primeira vez.

Roberto Menescal – Ouvi falar do João quando tava começando a tocar violão, aos 17 anos. Eu conheci o pessoal do Trio Irakitan e eles me convidaram pra ver um ensaio deles. Pra quem tava começando, era tudo que eu queria. Fiquei amigo do violonista deles, o Edinho (Edison Reis de França). Ele me chamou e falou “ouve essa música aqui”, e me mostrou Bim Bom ao violão. Eu fiquei impressionado e o João ficou na minha cabeça.

O POVO – E quando vocês se conheceram?

Menescal – Pouco depois, meus pais deram uma festa em casa pelos 30 anos de casamento deles. Foi uma tremenda de uma festa, com todo mundo a rigor e eu recebendo as pessoas e os presentes na porta, caixas de vinho, whisky, tudo. Aí apareceu um cara que não tinha nada na mão e disse “tem um violão aí?”. Ele disse que queria tocar um pouquinho.

O POVO – Mas ele chegou sem conhecer ninguém?

Menescal – Ele chegou do nada e nem se apresentou. Então eu abri a porta e mostrei que tava havendo uma festa enorme. Ele botou a cara e disse “ih, é grave, hein?”. Nunca esqueci dessa frase. Como ele disse que queria tocar violão, eu levei ele pro quarto e ele pediu pra tocar o violão. Foi aí que ele tocou Bim Bom. Eu lembrei da história e perguntei: “Você é o João?”. (João) “Sou. Como você sabe?”. Falei do Edinho, ele ficou “nossa! Que legal. Num da pra você ir embora comigo não?”. Então eu troquei de roupa, saí com ele pela noite e só voltei no dia seguinte.

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O POVO – E como ele era nessa época?

Menescal – O João sempre foi um tipo diferente. Falava pouco e ficava repetindo “que bom a gente se conhecer”, essas coisas. Um dia ele disse “olha, se quiser ir lá em casa, eu moro quase em frente a você”. Eu fui, era um apartamento em Copacabana, ele levou prum quarto que tinha umas seis camas. Era uma senhora que alugava, e no quarto tinha outro músico, o Waltel Blanco, que era maestro da TV Globo. Ele dizia que era confuso, por que os caras trabalhavam cedo e o João chegava 3hs da manhã e ficava tocando. Os caras botavam o travesseiro na cabeça.

O POVO – E vocês andando sempre juntos. Como era essa amizade de vocês?

Menescal – Ele era um cara sempre sem dinheiro. Pediu pra levar um terno pra lavar, pra almoçar lá em casa. Como o meu pai era um cara muito sério e ficava fora muito tempo, então ele almoçava muito lá em casa. Era três horas almoçando. A comida caia e ele dizia “olha que lindo”! Você já chegou perto João?

O POVO – Não, ainda não.

Menescal – Nem chegue. Você fica neurótico, com medo de dizer alguma coisa e isso sem ele dizer nada. Teve uma vez que o João quis conhecer o meu pai. Ele dizia “deve ser bonita a família”. Até minha mãe ficou com medo. Quando ele chegou, o pai lendo o jornal numa cadeira de balanço, aquela coisa. O João disse “boa noite, eu sou amigo do seu filho”. Eu já estava esperando o “tá pensando o que” e saí de perto. Com um tempo ficou um silêncio e quando olhei, eles dois numa boa conversando com João ajoelhado do lado da cadeira de balanço. Na hora de sair o meu pai disse “vou levar vocês na porta. Quando seu amigo quiser vir aqui, tudo bem”. O meu pai nunca levou um amigo até a porta. Mas ele tinha uma força…

O POVO – E era assim com todo mundo?

Menescal – Era. Teve uma época que ele foi morar na casa do Bôscoli, junto com o Chico Feitosa (cantor conhecido como Chico Fim de Noite) e o Miele. Isso nem se falava em Bossa Nova. Mas ele conquistou a gente com aquela batida. Nessa época, cada um tinha a sua batida, o seu jeito. Quando ele chegou, organizou tudo, deu a liga. Era a síntese.

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O POVO – Queria, então, que você lembrasse esse momento que a batida chegou.

Menescal – Niguém emtendeu direito. Com o tempo foi entendendo mais. O que acontece é que quem tocava o samba era o cara do morro com tamborim, pandeiro, agogô. E o cara do morro tinha uma levada que a gente não conhecia. Quando o João veio, veio com uma coisa bem definida. “Como você chega a isso?” (Menescal perguntava ao João). Era tão representativo e com tanta simplicidade. (João) “Como não dá pra tocar o samba inteiro, fui vendo como podia fazer. Então eu fiquei com o tamborim”. Ele sacou isso. Ele baseou a levada na batida do tamborim.

O POVO – Por outro lado, existe uma polêmica sobre quem de fato criou a batida da Bossa Nova. Se o João, o Johnny Alf, os americanos. Você tem dúvidas em relação a isso?

Menescal – Não existe um cara que inventou. A Bossa Nova não foi criada. Isso era a necessidade de trazer o samba pra baixo do morro e que pudesse fazer com motivos nossos. O Johnny ouvia muita música americana. O (João) Donato, do Acre, já tem uma coisa meio colombiana. Veio o Tom (Jobim), que tem a influencia européia, de Debussy. O universo inteiro conspirou para que aquilo acontecesse naquele momento. A gente, por acaso, estava no momento onde as coisas começaram a influenciar. Tudo foi chegando e nos deu a possibilidade de transformar o samba canção. Imagine eu com 18 anos, cantando “se eu morresse amanhã de manhã”?! Ele, inclusive, foi o primeiro a gravar nessa coisa ensolarada.

O POVO – E como foi a relação de vocês com as gerações anteriores? Artistas já com uma estrada acabaram entrando para Bossa Nova, como o Dick Farney.

Menescal – Tinha uma turma que já se encontrava, eu, o Carlos Lyra, o Chico Fim de Noite. Mas tem uma hora que a música achatou tudo. Nós tivemos a sorte de estar naquele momento. Eu era louco pelo Lúcio Alves. Um dia fui conhecê-lo conheço e ele disse que o João falou que eu tinha umas músicas legais. Mostrei o “Rio”. Ele gostou e disse “tem mais?”. Eu mostrei “O barquinho”. (Lúcio) “Tem mais?”. Eu fui mostrando e ele disse “vou gravar um disco só com músicas suas”. Imagine! Minha mãe e meu pai nem sabiam que eu tinha isso. Mas, esses artistas anteriores a nós, nos deram muita força.

O POVO – E o João fazia parte dessa que se encontrava, bebia, se divertia, ia pra praia junto?

Menescal – Tinha essa parte mais saudável da manhã e a parte da noite. Ele não era muito de praia. Era branco que nem… A gente ia muito para a casa da Nara (Leão). Ele chegava assobiando. Alguém ia atender e ele perguntava “quem ta aí?”. (resposta) “Ta o fulano, o fulano”. (João) “Ih! Tem muita gente. Que horas eles vão embora?”. Então ele chegava bem mais tarde, depois que muita gente já tinha ido. Ou seja, ele já adiantava o que seria hoje.

O POVO – E as drogas? O João tem um apelido que é comprometedor (Zé Maconha).

Menescal – Eu nunca vi ele bebendo ou puxando fumo. Te digo sinceramente. Se fez, eu não vi.

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O POVO – Sei que a Bossa Nova era um movimento de grande namoradores, como o Vinicius, o Tom. O João também era desses?

Menescal – O João, não. Ele tava tão ligado nesse negócio da música. Mas ele sabia fazer um charme. Ele chegava perto de uma menina com o violão e “você deve cantar bonito. Cante aqui comigo”. Ele fazia assim. Na turma todo mundo cantava, era aquela roda de gente. E ele fazia assim “nossa, mas você tem uma voz tão bonita”. Ele ficou nisso até que casou com Astrud (Gilberto).

O POVO – Qual a última vez que você viu o João?

Menescal – Esse dado você não vai acreditar. A última vez que estivemos juntos foi em 1962. Eu disse “João, me desculpe, mas eu vou sumir. Você me atrapalha muito. Você me consome”. Ele pedia muito tudo.

O POVO – E era assim com todos?

Menescal – Ele tinha sempre um, mas as pessoas sempre se afastavam. Fiquei um tempo até que larguei. Realmente chega uma hora que você tem que largar. Teve uma vez que eu passei quatro horas com ele pra comprar um chapéu em Nova York. Os vendedores já com raiva e ele provando um por um. “É que esse tem uma peninha”. E o vendedor dizia “mas a gente tira a peninha”. (João) “Mas ele foi feito pra ter uma peninha”.

O POVO – E depois dessa vez você nunca mais viu o João?

Menescal – Teve um dia que eu fui levar a Gal (Costa) no aeroporto. Eu tava de costas escrevendo alguma coisa, quando vi o João vinha a uns dois metros. (João) “Rapaz, soube que você está morando num apartamento com varanda. A gente podia botar uma mesa de ping pong lá”. (Menescal) “Não, João. Nada de ping pong”. (João) “Continua assim então?”. (Menescal) “É João”. (João) “Sem briga, né?”. (Menescal) “É, sem briga”. Confesso que ainda hoje eu não sei se o João existe.

O POVO – Você e ele têm discos gravados e carreira fora do país. Como é o nome dele fora do Brasil hoje?

Menescal – As pessoas falam muito, perguntam muito. Mas tem uma hora que as pessoas esquecem dele. Ele é tão impossível (de encontrar) que as pessoas não contam mais. O cara convida e ele não quer (fazer show). Agora, quando ele vai, todo mundo lembra, ele vira assunto. Agora ele falou que iria se aposentar. Ele fez poucos discos e ainda proibiu os três primeiros. É chato por que tem gente que não vai conhecer.

O POVO – Por conta do mitos, das histórias, o João é como um Michael Jackson brasileiro. O que não é verdade sobre o que dizem dele?

Menescal – Olha, é tanta história. É claro que as pessoas vão melhorando as histórias. Mas, quem conviveu com ele, todo dia tinha uma história. Teve uma vez que ele queria emitir (cantar) baixinho, mas de uma forma que todo mundo ouvisse. Ele começou cantando no quarto e pedia pra alguém dizer se tava ouvindo bem. Depois ele foi pra sala e perguntava, “ta ouvindo? Ta bom?”. Ele ia se afastando e quando vi ele tava do outro lado do prédio.

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O POVO – E como a participação dele no lendário show do Carnegie Hall?

Menescal – Ele era a grande estrela. Foi um sucesso que depois foi para o Village Gate, o lugar do jazz em Nova York. Lá ele era o mesmo eremita. Teve uma vez que pessoal da Time estava na porta do quarto dele, tentando fazer uma entrevista e ele não abria a porta. Quando eu vi, fui saindo na ponta do pé pra ninguém me ver. Mas eles me viram e pediram ajuda. Eu fui lá, bati na porta e falei que os caras da Time estavam esperando por ele. Ele disse pra mim “eu vi as capas da Time e vi que eles botam a gente de batom. Eu tenho respeito, num vou sair de batom”. Isso por que as capas eram colorias. A capa da ia ser com ele, mas ele não abriu a porta. Lembrei agora que a gente fez o Carnegie, o Village e depois fomos pro Auditorium of Washington. Quando tava chegando a hora do João entrar, ele não aparecia. O hotel era do lado e ele não queria descer. A Dora Vasconcellos (poetisa e consulesa do Brasil em Nova York) pediu pra eu saber o que acontecia e eu fui. Quando cheguei no quarto, o João usando um pijama de balãozinho, deitado na cama, tocando violão e o cônsul brasileiro do lado passando o paletó do João.

O POVO – Uma das histórias famosas dele é a do ar-condicionado que atrapalha as cordas do violão. Isso é uma mania ou de fato atrapalha?

Menescal – É mania. Até hoje ele entra no show e tem que ser sem ar-condicionado. “Aquela luz ta me atrapalhando”. São muitas condições. Imagino o cara que levou ele pro Japão (para a turnê que gerou o disco João Gilberto em Tókio). Eu encontrei o produtor que levou o João para o Japão e ele comentou, “rapaz, vou te contar um segredo, fechei com o João. O que você acha?”. (Menescal) “Acho que você devia desistir. O João é muito complicado”. Quando o João acabou, foi o maior sucesso da história do Japão. O João ficou 25 minutos com o povo batendo palmas. Depois, tentei falar com ele (empresário) pra dar os parabéns e um amigo dele me disse, “rapazm, tu não soube? Ele teve um infarto e voltou a beber”. Eu nem sabia que ele era alcoólatra. Encontrei com ele depois e ele disse, “o João acabou com minha vida”. Fica uma situação muito tensa.

O POVO – O João Gilberto é rico?

Menescal – Eu acho que não. Ele sempre cobrou bem e sempre venderam bem o show dele. Mas, você faz cinco shows no ano, vamos botar 800 mil reais. Com isso não dá pra comprar um bom apartamento e manter. Não acredito que ele possa se aposentar.

O POVO – Mas ainda tem amigo pra ajudar?

Menescal – Sempre tem alguém pra ajudar.

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O POVO – E qual a importância dele hoje para a MPB? Ele ainda é uma influência para os jovens músicos?

Menescal – É, mas não tanto quanto podia ou devia ser. As pessoas descobrem coisas no youtube, mas fica nisso. As pessoas descobrem coisas do canto, mas não conhecem o pessoal. E, pra ser ídolo, tem que ter o pessoal também. Se ele fosse um cara mais presente, influenciaria muito mais.

O POVO – Mas, é de fato um gênio?

Menescal – É, de fato ele é um gênio. A simplicidade dele é mortal. Como pode ser tão simples e tão bom? Se fosse pro mal, ele seria um Hitler. Ele tem a força de dominar uma nação. Um perigo latente.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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