Alcione resolveu comemorar seus 40 anos de carreira fazendo o que mais sabe, cantando. Cantora de voz encorpada fortemente ligada à história do bom samba brasileiro, a maranhense se perdeu na pasteurização dos anos 80 gravando canções de tom mais popular. Se a voz continuou uma fortaleza, mas as letras e os arranjos se encaminharam para uma amor exagerado e uma tecladeira sem fim. De lá pra cá, fez trabalhos diversos sempre com um pé na qualidade e outro na popularidade. Nada mais sintomático, então, do que fazer aniversário lançando dois discos, para atender diferentes públicos. Por isso mesmo, o projeto foi batizado de Duas Faces. O primeiro volume foi lançado ainda em 2011 em CD e DVD (com os bastidores das gravações) e agregou em 16 faixas, músicas em português, francês e italiano. Apesar da ideia bilingue transparecer a vontade de começar pela face mais sofisticada, podemos concluir que a Marrom acabou ficando em cima do muro. Isso já fica claro nas duas primeiras faixas, Duas Faces (Altay Veloso) e Quem já esteve só (Ivor Lancellotti/ Paulo César Pinheiro). Ambas trazem a mesma imagem de outros tantos sucessos da cantora, a mulher traída que briga com seu amante, mas não o larga por nada nesse mundo. Mesmo no repertório internacional os resultados são abaixo do esperado. Comme ils disent, de Charles Aznavour, é um bom momento de voz e piano, mas dá lugar a Passione eterna (Enzo Di Domenico/ Aurélio Fierro/ Vittorio Annona), com um arranjo excessivamente feio. Estate (Bruno Martino/ Bruno Brighetti) é delas a melhor por manter uma elegância que condiz com a proposta desta primeira face de Alcione. De volta ao Brasil, Rua sem sol (Mário Lago/ Henrique Gaudelman) e O sono dos justos (Marcus Lima/ Marcio Proença/ Rodrigo Sestrem) falam sobre as injustiças do mundo, mas em tom poético. Mas Passional (Fátima Guedes) e Até as lágrimas (Raul santos/ Benil Santos) voltam ao velho amor bandido, mas com melhor resultado. Como não falta nesse tipo de trabalho comemorativo, Duas Faces também traz um time ilustre de convidados. Maria Bethânia joga sua voz sagrada sobre Sem mais adeus (Francis Hime/ Vinicius de Moraes), enquanto Áurea Martins coloca a verdadeira sofisticação em Pela rua (Dolores Duran/ J Ribamar). Djavan acerta o tom e dá mais balanço à sua Capim, batendo uma bola certeira com Alcione. Amigos de longa data, a Marrom e Emílio Santiago dividem 40 anos (Altay Veloso/ Paulo César Feital), o melhor momento do disco. Como uma boa sambista, a anfitriã termina tudo em clima de animação. Evolução é uma composição hilária de José Cavalcanti de Albuquerque que recebe um majestoso Lenine. Em seguida, encerrando os trabalhos, Martinho da Vila homenageia a aniversariante com Ilha de Maré (Walmir Lima/ Lupa). Se não exibiu sua face como deveria, Alcione pode fazer melhor no segundo volume, gravado ao vivo na Mangueira. Ali sim é um terreno onde ela manda e desmanda.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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