Esbanjando sensualidade, gostosura e atitude, a Gal Costa que subiu no palco carioca do Teatro Tereza Raquel em 1971 não estava para brincadeiras. Musa entre as musas do tropicalismo, a baiana abria a boca carnuda de lábio vermelhos todas as noites para desfilar um repertório furioso de rocks, blues, sambas, bossas e frevos. Tudo cabia naquele palco meio hippie, meio clássico, meio tudo. Muitas metades juntas, como 2 e 2 são cinco. A conta não fechava, assim como aquele evento musical não se encerrou até hoje.

Mais livre do que nunca, na primeira metade da noite, aquela jovem cantora de 26 anos empunhava seu violão para desfiar sozinha um rosário de maravilhas atemporais. Tocando com as pernas provocativamente abertas, ela deixava a plateia babando, desejosa de ver o que mais havia por baixo da saia colorida que cobria suas belas pernas. Quando chegava a segunda parte, a musa de todas as estações chamava seus escudeiros para eletrificar a casa. O gênio louco Lanny Gordin soltava fogo de sua guitarra mágica em solos incendiários, enquanto Novelli e Jorginho marcavam o compasso no baixo e na bateria.

Tudo era improvisado. Tudo era rock. Tudo era novo. Tudo era Gal Costa. Ponto alto daquele verão divino maravilhoso, o show Gal A Todo Vapor era o contraponto de Brasil careta e cheio de regras ditadas por um governo militar quadrado. Registrado num disco duplo, a ópera da baiana tinha tempero apimentado e doce, como sua voz. Dirigida pelo conterrâneo Wally Salomão, ela construiu ali seu Hotel das Estrelas e levou seu público para o espaço, sempre contando com o reforço de substâncias pouco recomendadas.

Com Gal Costa vivendo o auge da voz, do corpos e do seu momento criativo, tudo que está registrado ali é perfeito. Até os erros parecem perfeitos. Como um microfone que escorrega e cai, provocando um barulho surdo. O que pode soar mais melancólico do que Sua estupidez? O que é mais agressivo que Mal secreto? O que mais festivo do que Bota a mão nas cadeiras? Retrato de um tempo onde transgredir era proibido, embora necessário, Gal Costa desafiava o ilógico e se transmutava em Janis Joplin, em João Gilberto, em Jorge Ben. Eram as forças da natureza agindo harmonicamente para criar um momento único, que não deve voltar nunca mais.

Faixas de Fa Tal – Gal A todo Vapor (1971):
1. Fruta Gogóia (tradicional do folclore baiano)
2. Charles Anjo 45″ (Jorge Ben)
3. Como 2 e 2 (Caetano Veloso)
4. Coração Vagabundo (Caetano Veloso)
5. Falsa Baiana (Geraldo Pereira)
6. Antonico (Ismael Silva)
7. Sua Estupidez (Erasmo Carlos/ Roberto Carlos)
8. Fruta Gogóia (tradicional do folclore baiano)
9. Vapor Barato (Jards Macalé/ Waly Salomão)
10. Dê um Rolê (Luiz Galvão/ Moraes Moreira)
11. Pérola Negra (Luiz Melodia)
12. Mal Secreto (Jards Macalé, Waly Salomão)
13. Como 2 e 2 (Caetano Veloso)
14. Hotel das Estrelas (Duda Machado/ Jards Macalé)
15. Assum Preto (Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira)
16. Bota a Mão nas Cadeiras (tradicional do folclore baiano)
17. Maria Bethânia (Caetano Veloso)
18. Não Se Esqueça de Mim (Caetano Veloso)
19. Luz do Sol (Carlos Pinto/ Waly Salomão)

>> Mal secreto (Jards Macalé/ Waly Salomão) por Carlus Campos

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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