Imagine que você chega em casa e encontra o Homem-Aranha espanando o teto da sala enquanto o Homem-de-Ferro dá uma boa lustrada no seu Fiat 147. Nem isso seria uma surpresa tão grande se comparado ao que foi a chegada dos Secos & Molhados no mercado brasileiro no início dos 1970. A postura agressiva, o rebolado lascivo, o discurso corajoso, o som marcante, tudo parecia ter sido feito como um tabefe na cara da ditadura que insistia em se manter no poder naquela época. Ah! E a voz de Ney Matogrosso. O que era aquilo?! Um homem magro, de peito peludo, gingando os quadris enquanto soltava uma voz que combinava peso e sutileza na medida exata. Nada poderia afrontar mais os fardados do que o canto de Ney.

Lançado em 1973, o primeiro disco do trio, formado ainda por Gerson Conrad e João Ricardo, era a arte em seu momento supremo. Coisa dessas que quase nunca acontece. Mas essa aconteceu e chegou de nariz em pé, botando uma nova ordem no coreto. No lugar de se esconder, eles se mostravam ainda mais intensos por trás dos rostos pintados, dos balangandãs e das enormes penas de pavão. Enquanto o Estado mandava o povo ficar calado, os Secos diziam “Fala”. Enquanto a coragem, por si só, já parecia subversiva, eles conclamavam “quem tem consciência para ter coragem, quem tem a força de saber que existe”.

Como se não bastasse, a qualidade musical e estética daquele grupo veio junto com um imenso sucesso popular. A divertida O Vira, pescada do folclore português, fez fama até entre as crianças que se divertiam (vejam só!) com versos tão politicamente incorretos para a época quanto “vira homem, vira lobisomem”. Cantada por homens tão coloridos, trajados de forma tão alegre, aos olhos infantis, eram como personagens brincando com o proibido. O resultado foi um show realizado no Maracanãzinho em 1974 que reuniu uma multidão dentro e fora do estádio. Outra prova do imenso sucesso do trio é a lendária história de que faltou vinil na época para suprir a demanda de LP que o mercado pedia. O jeito foi derreter o estoque para fazer mais Secos & Molhados.

Enquanto a caretice imperava no País, eles assumiam os próprios pecados e até pareciam se orgulhar deles. O estouro do Secos & Molhados naqueles anos foi tanto, que nem eles seguraram a barra e acabaram implodindo entre brigas internas envolvendo direitos e deveres. Junto com o fim, veio o segundo e derradeiro disco, em 1974. Apesar da morte anunciada, este último trabalho ainda é um misto inacreditável de rock, latinidade, blues e progressivo. Com a saída de Ney Matogrosso naquele mesmo ano, ainda houve uma tentativa de continuar com um novo vocalista. Mas, não adianta insistir no contrário, para sempre eles tentariam achar um novo Ney Matogrosso. Como isso não seria mesmo possível, o Secos & Molhados de fato acabou. Ainda assim, há um consolo. Muita coisa ainda há por ser descoberta nesses dois discos.

Faixas de Secos & Molhados (1974):

1. Tercer Mundo (João Ricardo/ Júlio Cortázar) 2:36
2. Flores Astrais (João Ricardo/ João Apolinário) 3:51
3. Não: Não Digas Nada (João Ricardo/ Fernando Pessoa) 1:37
4. Medo Mulato (João Ricardo/ Paulinho Mendonça) 2:18
5. Oh! Mulher Infiel (João Ricardo/) 1:30
6. Vôo (João Ricardo/ João Apolinário) 2:34
7. Angústia (João Ricardo/ João Apolinário) 2:45
8. O Hierofante (João Ricardo/ Oswald de Andrade) 2:15
9. Caixinha de Música do João (João Ricardo) 1:04
10. O Doce e o Amargo (João Ricardo/ P. Mendonça) 1:52
11. Preto Velho (João Ricardo) 1:01
12. Delírio (Gerson Conrad/ P. Mendonça) 2:39
13. Toada & Rock & Mambo & Tango & Etc. (João Ricardo/Luli) 2:08

>> Flores astrais (João Ricardo/ João Apolinário) por Carlus Campos

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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