Correndo léguas da falsa ingenuidade da Jovem Guarda, Wanderléa entrou na década de 1970 mostrando um lado mais corajoso da sua personalidade artística. Mesmo sem renegar os tempos de Ternurinha e hits como Pare o casamento, agora ela queria mais. “A Jovem Guarda trouxe uma inovação em estilo, imagens e comportamento para os jovens. Acabou ficando uma leitura de ingênua. Mas, depois, o que eu fiz foi ainda mais ousado”, conta a cantora por telefone.

O retrato desses novos tempos ainda mais corajosos está no box Wanderléa Anos 70, lançado este mês pelo selo Discobertas. A caixinha reúne cinco discos lançados entre 1972 e 1981 pela cantora mineira que fala com voz segura e cheia de personalidade. Completa ainda o box uma coletânea de raridades e compactos que ficaram perdidos pelo tempo. Entre as preciosidades desse último está A charanga, composição própria (ao lado de Dom), gravada junto com Marinês e sua Gente. Além desta, que foi apresentada no V Festival Internacional da Canção Popular, tem ainda um dueto com o também jovenguardiano Leno (Chegou, sorriu, gostei), frevos (Chuva, suor e cerveja e Que horas são) e samba rock (Krioula e Mané João).

Essa salada de estilos, sons e sotaques era a tônica do trabalho da cantora ao longo daquele período. Aparentemente chocante para aqueles fãs mais conservadores, o inovador Maravilhosa (1972) seguia nessa linha e se tornou um marco na sua história. Focando nos sons da black music nacional, o disco marca uma época em Wanderléa montava discos pensando no ele lhe proporcionaria no palco. “Foi uma quebrada total. O show desse LP foi um sucesso”, conta ela. Tão surpreendente quanto a peruca black power que ela ostenta na capa, são os arranjos de Back in Bahia (Gilberto Gil), Alegria (Fábio) e Vida maneira (Hyldon).

Se a carreira lhe soprava bons ventos naquela época, a vida particular lhe reservaria uma boa rasteira. Casada com Renato Barbosa, filho de Chacrinha, Wanderléa teve que dar um tempo nos discos por conta do acidente que deixou seu marido tetraplégico. Vivendo um turbilhão emocional, ela jogou tudo no ao vivo Feito gente (1975). Dirigido por Rosinha de Valença, o espetáculo era marcado pelo peso de guitarras e momentos de forte emoção, como Carne, osso, coração (Joyce), Que falem de mim (Bidu Reis) e Que besteira (Gil/ João Donato).

Dois anos depois, Wanderléa havia enfrentado a separação com Renato e estava em busca de se reerguer como artista. Foi então que Egberto Gismonti chegou lhe trazendo um novo amor e um novo som, registrado em Vamos que eu já vou (1977). Apontado como um clássico da discografia da cantora, o disco não se parece com nada que já tivesse cantado. “É um trabalho completamente vanguarda. Nesse disco está mais a euforia música, do reencontro”, avalia ela que, ainda muito próxima do músico, não nega a vontade de voltar àquela parceria. Pontuado por teclados progressivos pilotados pelo próprio Gismonti, esse disco apresenta uma Wandeca bem distante das baladas românticas e roquinhos iê iê iê. O destaque fica para a percussiva Calypso (Gismonti/ Geraldo Carneiro) e para o pessimismo de Café (Gismonti).

Fechando a década de 1970, Mais que a paixão (1978) ainda exibe uma intérprete em busca de novidades, antes de estrear nos 80 com o fraco Wanderléa (1981). Enquanto o primeiro ainda vem com uma banda afiada e arranjos orgânicos, o segundo já é costurado pela tecladeira bem datada. De Mais que a paixão, Antes que o mundo acabe (Roberto/ Erasmo) tem cara daquelas composições que o Rei não quer ver nem de longe (“nossos corpos se entregando numa orgia sem ter fim”). Já O canto da lira é uma coposição inédita de Djavan, que traz de brinde o violão ágil do alagoano. O disco encerra com uma tocante faixa título, dividida apenas com o piano virtuoso de Egberto Gismonti.

Apesar de ter feito sucesso com a machista Na hora da raiva (Roberto/ Erasmo) e de ter expurgado alguns demônios na autobiográfica Ser estranho (Airsteu/ Casablanca/ Wanderléa), o disco de 1981 já aponta para o sucesso popular pasteurizado. Dali em diante, outras tragédias iriam bater firme na cantora. A morte do filho de dois anos e a perda de um irmão para a AIDS testaram sua capacidade de se manter firme. Hoje, ela planeja contar essa história numa autobiografia, que já está sendo escrita há quase 10 anos, mas só agora deve chegar à lojas pela editora Record (uma reunião sobre o assunto estava marcada para o fim da semana passada). Junto com isso, Wanderléa tem ainda alguns projetos esperando sua hora, como o lançamento de um DVD e de um CD de inéditas. Até lá, ela prefere curtir esse o passado reunido nesse Box. “Espero a surpresa das pessoas que não acompanharam esse trabalho. É um referencial pra mim também. Fico feliz de ter tido a possibilidade de fazer isso. Quando eu ouço esses discos, penso ‘agora eu entendo esses fãs’”, encerra.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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