A carreira que se desenhou para o disco Construção, lançado em 1971 por Chico Buarque, é digna de parte dos grandes clássicos. Trata-se, oficialmente, do quinto disco do carioca e o primeiro que não trazia seu nome no título. Nos, até então, cinco anos que ele tinha de carreira, já haviam sido também lançados outros três trabalhos: a trilha do espetáculo Morte e vida severina, com letras de João Cabral de Melo Neto, e dois discos de releituras em italiano. É fato que Chico já acumulava no currículo algumas canções que para sempre serão lembradas como clássicos da MPB. Mas, quando Construção chegou, a história do cantor e compositor deu um salto quântico em direção à modernidade, com direito a arranjos orquestrais inspirados e vocais marcantes feitos pelo MPB-4.

Construção é o primeiro trabalho de Chico que se aproxima de uma unanimidade em termos de crítica. Surgindo num cenário de festivais e competição entre compositores, Chico Buarque teve como primeiro grande sucesso A Banda. Sua verve lírica, olhar cronista e apreço por melodias simples apegadas ao samba e à bossa nova foram lhe dando famas de tradicionalista e, com o tempo, antiquado. O apelido de “novo Noel Rosa” carrega esse elogio à qualidade e olhar para o passado.

Ao mesmo tempo, ao seu redor, emergia um Brasil sem liberdade e cada vez mais endurecido pela ditadura militar. Esse cenário ficou ainda mais crítico em 1968, com a instauração do Ato Institucional Nº5, que fechou o congresso nacional, suspendeu o habeas corpus em caso de crime político e criou a censura prévia para obras artísticas. Na mesma época, de fontes não oficiais, surgiam notícias de torturas, sequestros assassinatos. Diante do quadro, Chico aproveitou uma viagem agendada para a Europa e por lá ficou por dois anos.

Voltou em abril de 1970, mais maduro e com uma família para cuidar. O país não estava menos tenso, mas ele quis dar uma resposta aos anos de crítica à sua obra e abuso político. Essa resposta veio num disco moderno, de arranjos pesados e letras que retratavam um Brasil menos carnavalesco, mais real. Deus Lhe Pague abre com uma lista de pequenas coisas encerradas pela expressão “deus lhe pague”. Como uma cusparada na cara do bom mocismo, a letra  quase punk, que cita “grito demente”, “rangido dos dentes” e “moscas-bicheiras”, vem embalada em melodia agressiva. Assim como o último movimento da faixa Construção, cujo personagem principal morreu na contramão atrapalhando o tráfego.

Compõem ainda Construção Minha História, versão de Chico para Gesù Bambino, de Lucio Dalla, um dos compositores italianos com quem o brasileiro teve contato durante o exílio; Desalento e Valsinha, parcerias com Vinicius de Moraes, amigo com quem trabalhou muito na Europa; e Samba de Orly, cuja melodia Toquinho construiu na véspera de voltar ao Brasil. Ao ouvi-la, Chico, imediatamente, compôs os versos finais, cabendo a Vinicius os últimos tratamentos na letra.

O resultado foi uma procura enorme por Construção nas lojas. Tanto foi que outras duas gravadoras concorrentes foram contratadas para prensar o disco que chegou à incrível marca de 10 mil cópias vendidas por dia. Claro que os militares botaram olho gordo e implicaram com muitos trechos do álbum. Caetano Veloso, que representava uma espécie de antítese mais moderna e pop de Chico, reverenciou o álbum que contou com arranjos do maestro tropicalista Rogério Duprat. Neste limbo temporal e estético entre a tradição e a modernidade, este quinto disco do carioca de olhos ardósia é tido como um clássico atemporal, político e poético.

Faixas de Construção (1971):

1. Deus Lhe Pague (Chico Buarque) 3:19
2. Cotidiano (Chico Buarque) 2:49
3. Desalento (Chico Buarque/ Vinicius de Moraes) 2:48
4. Construção (Chico Buarque) 6:24
5. Cordão (Chico Buarque) 2:31
6. Olha Maria (Chico Buarque/ Vinicius de Moraes/ Tom Jobim) 3:56
7. Samba de Orly (Chico Buarque/ Toquinho/ Viicius de Moraes) 2:40
8. Valsinha (Chico Buarque/ Vinicius de Moraes) 2:00
9. Minha História (Lucio Dalla/ Paola Pallotino/ versão: Chico Buarque) 3:01
10. Acalanto (Chico Buarque) 1:38

>> Desalento (Chico Buarque) por Carlus Campos.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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