Existem figuras que atravessam a história deixando uma marca tão forte que chega a ser impreciso dizer se elas eram somente humanas. Na literatura, na medicina, na música, onde quer que seja, elas existem para dar uma sacudida e para mostrar que as coisas podem ser diferentes. Uma dessas figuras é Raul Seixas. Baiano da capital, ele transcendeu ao papel de cantor e compositor para se tornar uma espécie de líder messiânico, guru ou filósofo que, mesmo passados muitos anos depois de sua morte, os fãs não o largam por nada nesse mundo. Dono de um pensamento rápido, ácido e criativo, ele passou uma vida construindo uma assinatura artística que se mostrava em canções apaixonadas, políticas e reflexivas com a mesma intensidade.

Isso está registrado logo no disco Krig-ha, Bandolo!, estreia solo de fato e de direito, lançada em 1973. Sim, de fato e de direito. Antes desse álbum, Raul já havia estado presente em três discos, mas em formatos diferentes. Nos anos 1960, o jovem aspirante a artista formou em sua terra natal a banda Os Panteras, que foi para o Rio de Janeiro e, em 1968, lançou o álbum Raulzito e Os panteras. A banda não deu em muita coisa, mas Raulzito garantiu seu emprego como produtor de vendas da CBS. Certo de que poderia dar certo como cantor e compositor, ele abre mão do nome artístico e assina com o nome de batismo no anárquico projeto coletivo Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta: Sessão das Dez, dividindo a responsabilidade com os “malditos” Sérgio Sampaio, Miriam Batucada e Edy Star. O caos sonoro daquele quarteto maluco foi o segundo fracasso comercial de um artista que começava a se firmar como compositor e produtor. Mas ele queria mais.

Ainda antes de estrear de fato e de direito, em 1973, Raul deu voz a clássicos do rock nacional e internacional nos dois volumes de Os 24 Maiores Sucessos da Era do Rock. Mesmo cantando e produzindo a série, Raul foi proibido pela gravadora de colocar seu nome na capa – o álbum foi creditado à inexistente banda Rock Generation. O motivo da proibição era evitar que Raul competisse em vendas com o próprio Raul, que enfim lançou se lançou por completo naquele mesmo ano.

Produzido pelo próprio Raul ao lado de Marco Mazzola, Krig-Ha, Bandolo! é cheio de personalidade em todos os seus aspectos e, por isso, merece estar entre os melhores já lançados no Brasil. Na capa, fugindo de qualquer padrão de beleza, o compositor beirando os 30 anos exibe sua magreza esquelética numa foto de braços abertos, tal qual Cristo. Na palma da mão, o símbolo da Sociedade Alternativa que ele começaria a tornar pública naquele mesmo ano, quando integrou o elenco do megashow Phono 73. O olhar baixo explicita todo o descaso de alguém que não está ali esperando aprovação ou concordância. O título do disco foi dos quadrinhos do herói das selvas Tarzan e significa “o inimigo está próximo”. Que inimigo? A ditadura? Os norte-americanos? Ele mesmo?

Da autobiografia torta Mosca na sopa à dylanesca As Minas do Rei Salomão, cada faixa em Krig-ha, Bandolo! revela uma fatia do modo de agir e pensar do roqueiro. Além de se mostrar por completo como cantor, compositor que pode se orgulhar de usar o próprio nome, aqui, Raul apresenta seu mais célebre e polêmico parceiro: Paulo Coelho. Anárquicos e curiosos por drogas, ciências ocultas e discos voadores, eles foram construindo canções que usavam a linguagem pop para falar sobre as dores da liberdade vigiada, da caretice e das formas de encontrar a liberdade. “Faze o que tu queres. Há de ser tudo da lei”, é o que defenderiam, citando o bruxo inglês Aleister Crowley. Paulo passou a renegar muito do escreveu na época, mostrando ser ele também uma metamorfose ambulante.

E se há de ser tudo da lei, não deveria haver limites para a criação sonora. O disco abre com a voz de um pequeno Raul, de 9 anos, cantando Good Rockin’ Tonight. Apesar de precária, a vinheta revela que ele era roqueiro desde o berço. Mas ser roqueiro não impedia de entrar um ponto de macumba em Mosca na Sopa (dizem que uma das vocalistas recebeu um santo na hora da gravação), ou um maxixe em Rockixe ou um autêntico soul gospel em Dentadura Postiça. No entanto o maior sucesso de Krig-Ha, Bandolo! foi a triste reflexão de Ouro de Tolo, criticando os sonhos classe média de uma sociedade que se contenta com um carro, uma casa e uma família feliz. Para Raul, essa brincadeira de conformismo é um tanto quanto perigosa.

Por isso, quase tudo é escrito em primeira pessoa, como Metamorfose ambulante, tão simples e cheia de ideias que chega a confundir. “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”, diz ele com o dedo em riste em canções que nunca parecem ser tão óbvias. Como em A Hora do Trem Passar, cuja lírica tensa se abre em mil possibilidades. Dali em diante, Raul Seixas continuou se desnudando em canções e sofrendo as consequências de uma vida desmedidamente fora dos padrões. Provou a fama, a doença, o esquecimento, os ostracismo, a imortalidade. Ou, melhor dizendo, Raul criou os próprios padrões e morreu por eles.

Faixas de Krig-Ha, Bandolo! (1973):
1. Introdução: Good Rockin’ Tonight (Roy Brown) 0:50
2. Mosca na Sopa (Raul Seixas) 3:58
3. Metamorfose Ambulante (Raul Seixas) 3:50
4. Dentadura Postiça (Raul Seixas) 1:30
5. As Minas do Rei Salomão (Raul Seixas/ Paulo Coelho) 2:22
6. A Hora do Trem Passar (Raul Seixas/ Paulo Coelho) 1:50
7. Al Capone (Raul Seixas/ Paulo Coelho) 2:38
8. How Could I Know (Raul Seixas) 2:36
9. Rockixe (Raul Seixas/ Paulo Coelho) 3:44
10. Cachorro Urubu (Raul Seixas/ Paulo Coelho) 2:08
11. Ouro de Tolo (Raul Seixas) 2:51

>> Metamorfose ambulante (Raul Seixas) por Carlus Campos

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

View All Articles