baden-powell2Carioca do município de Varre-e-sai, Baden Powell era uma universidade do violão. Seu domínio sobre o instrumento ia além da técnica, era uma simbiose, uma relação da maior intimidade. Quando seus dedos tocavam nas cordas, era possível ouvir os atabaques dos terreiros de candomblé, a genialidade dos jazzistas, a elegância dos eruditos, os metais das bandas de coreto, a alegria das escolas de samba e o lamento dos chorões. Fosse acompanhado de uma grande voz ou sozinho com o instrumento, sua presença era algo além do natural.

Isso se percebe no disco Live at the Rio Jazz Club, relançado pela gravadora Kuarup. Gravado em maio de 1990, o registro traz o essencial do músico. Simplesmente ele, o violão e um repertório que resume os muitos caminhos por onde seu som passeou. “Vou fazer um showzinho, já que hoje é o último dia da minha temporada aqui nessa boate”, se apresenta Baden modestamente antes de dedilhar Valsa de Eurídice, uma das mais comoventes peças da curta obra solo do parceiro Vinicius de Moraes. É, o Poetinha, pouco reconhecido como músico, era capaz de compor dessas.

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Do delírio apaixonado de Orfeu e Eurídice, Baden Powell parte para outros espaços musicais, como o Nordeste seco e quente de Luiz Gonzaga. Num improviso de mais de nove minutos, a Asa Branca voa o mais alto que pode, faz rasantes e sobe novamente até as estrelas. Estrelas também são Pixinguinha e Garoto, dois mestre do chorinho, que Baden humildemente homenageia em Rosa, Naquele tempo e Gracioso. Da Bahia, onde brinca com o ritmo de Dorival Caymmi, ele parte para o Pernambuco do violeiro João Pernambuco.

Um dos principais intérpretes da parceria de Baden com Vinícius foi o carioca Cyro Monteiro (1913 – 1973), relembrado na antológica Formosa. Baden conta que a canção foi escrita numa viagem de trem, onde ele e o poeta, antes de entrarem na cabine, partiram para o bar do vagão. Lá, Vinicius se encantou por uma “mulata de seios enormes, manequim 48, ‘sim senhor muito grande’ e sorriso lindo” e logo lhe compôs um samba. Para encerrar o recital, o violonista, com a voz cheia de lirismo, agradece ao seu instrumento por tantas que eles dividiram. “Qualquer que seja a morte a esperar, jamais meu violão me abandonará”, reconhece em Violão vadio.

De pai pra filho

Assim como era capaz de unir tantas tradições, Baden Powell foi capaz também de imortalizar a própria tradição. Em grande parte, ela está presente no filho Louis Marcel Powell, nascido na França e crescido no Brasil. Violonista como o pai, ele acaba de lançar o disco Violão, voz e Zé Kéti, em parceria com o cantor Augusto Martins. O tributo transporta 12 sambas do portelense para um ambiente intimista, que ressalta as letras e melodias embebidas de uma simplicidade rebuscada.

Carioca com cinco discos gravados, Augusto conheceu e cantou junto com Zé Kéti, pouco antes do sambista morrer em 1999. Dono de um registro grave e macio, ele deixa a voz se emaranhar nas cordas de Marcel Powell, um virtuose de pouco mais de 30 anos. Juntos, eles fazem um repertório que mistura clássicos (a maioria) com composições obscuras. Estão presentes Diz que fui por aí, Malvadeza Durão e A voz do morro, sambas emblemáticos ainda presentes em muitas rodas de batucada. Da politizada Opinião à malandragem marginal de Nega Dina, tudo é tratado com a medida certa de informalidade e atenção. Sem medo de comparações com o pai, Marcel desconstrói Acender as velas num voo solo de toques trágicos influenciados pela música flamenca. O mesmo acontece em Máscara negra, cuja saudosa tristeza é ressaltada. Mas é uma tristeza feliz, que deixaria Zé Ketti e Baden orgulhosos.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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