Das cantoras brasileiras surgidas neste século, Ana Canãs pode figurar entre as cinco mais corajosas. Com jeitão elétrico, descaso para rótulos e o desbunde na ponta da língua, ela costuma apresentar no palco uma salada pop divertida, que, quanto mais livre, melhor. O repertório, seja autoral ou não, ainda é uma obra em construção, meio sem rumo, mas com alguns momentos dignos de nota.

Nesse caminho ainda em busca de uma definição, ela chegou aos 10 anos de carreira, que comemora com o primeiro disco ao vivo. Gravado no Teatro Geo, São Paulo, em maio de 2013, Coração Inevitável é fruto da parceria da Guelo Records (selo da cantora) com a gravadora Som Livre, braço musical da Rede Globo que já colocou uma música do disco na trilha da novela Joia rara.

Coração Inevitável poderia ser mais um DVD de mais uma voz feminina brasileira, não fosse a direção e iluminação de Ney Matogrosso. Artista maior dos palcos brasileiros (e um dos maiores do mundo), Ney arranca feminilidade, maturidade e teatralidade de Ana Cañas dando a ela um ar de diva contracultural, meio bandida, solta na vida, quase sob medida para as 20 canções elencadas no repertório. Por outro lado, tira algo da espontaneidade da cantora criando cenas e situações ensaiadas.

Grande parte das faixas do show foi tirada do álbum Volta (2012), que apresentava uma cantora mais mansa depois do explosivo Hein? (2009), tão ignorado nesse primeiro registro ao vivo quanto Amor e Caos (2007), seu trabalho de estreia. Depois de um período de exageros, Ana Canãs se mandou pra um lugar afastado com sua banda e montou um repertório que roça o jazz e a MPB, com alguma personalidade e rebeldia bem dosadas. Sem deixar a profundidade de lado, ela mantém um pé no rock and roll, mas muito bem seguro nas rédeas.

Curiosamente para um trabalho carimbado por Ney Matogrosso, é essa Ana Cañas controlada que aparece em Coração Inevitável. Num repertório ainda desconexo, ela balança seu corpo magro dentro de um vestido colado que lembra a época mais performática de Gal Costa. Por falar em diva, impossível não lembrar de Maria Bethânia nos momentos em que a paulistana declama os próprios poemas.

A abertura do show acontece com Urubu rei, a melhor faixa de Volta e uma das melhores de 2012, soa forte no palco, mas é como um alienígena no repertório que segue com a popíssima Todas as cores. Além dessas, a seleção autoral de Coração Inevitável repete alguns ótimos momentos de Ana Canãs, como Difícil, No quiero tus besos (parceria com Natália Lafoucade), Diabo e Traidor. Na seleção de intérprete, fica claro que quanto mais coragem ela imprime, melhor. A pedrada zeppeliniana Rock and roll ganha acento folk bem temperado pela guitarra de Fabá Jimenez. Já Codinome beija-flor, Blues da piedade e Retrato em branco e preto passam despercebidas. Standarts internacionais, como La vie em rose e Stormy weather, valem apenas pelo registro. Já Escândalo vale pela performance cabaret, que volta a evocar uma Gal Costa de 40 anos atrás.

[youtube]https://www.youtube.com/watch?v=GjPsTDEhIeo[/youtube]

Como diretor, Ney Matogrosso é discreto e não aparece nem nos extras. O único convidado de Coração Inevitável é o onipresente Nando Reis, dividindo o sucesso Pra você guardei o amor e a parceria inédita com Ana Você bordado. Fora essas, é ela quem segura a imensidão do palco sozinha e, em certos momentos, fica sem saber o que fazer. Mas, da insegurança podem sair boas ideias para uma artista ainda se descobrindo.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

View All Articles