tumblr_mg4c24aenO1rmpj9fo1_1280Dos quatro baianos que incendiaram a música brasileira na segunda metade da década de 1960, Gilberto Gil e Gal Costa eram mais roqueiros do que Caetano Veloso e Maria Bethânia. Enquanto os dois últimos cresceram com uma lente sobre a tradição brasileira, os dois primeiros olharam com carinho para o pop, misturando os sons que vêm do exterior às suas raízes sambistas e bossanovistas.

Talvez seja esse filtro pop em comum que faz de Gilberto Gil & Gal Costa Live in London um registro de valor incalculável. Captada em 26 de novembro de 1971, no centro estudantil da City University de Londres, a gravação estava inédita até sair recentemente em CD duplo pela Discobertas. O material foi encontrado em 1998, quando Marcelo Fróes, dono do selo, estava garimpando material para uma caixa de raridades de Gil. Entre os achados, estava o show realizado durante o inverno inglês e que contou com uma plateia formada por muitos exilados da Ditadura Militar brasileira.

AF-GAL & GIL encarte paginado.inddDesde julho de 1969, Gil e seu amigo Caetano também faziam parte daquele time de exilados. Depois de expulsos do País, os tropicalistas foram para Paris e, logo em seguida, se fixaram em Londres. Diante da distância, eles reagiram de formas bem diferentes. Enquanto o filho de Dona Canô sofria com saudades de casa, o compositor de Aquele abraço caiu de boca na cena musical que surgia com Jimi Hendrix, Pink Floyd, Beatles e Rolling Stones. Com livre circulação na ponte Brasil-Londres, Gal Costa era a emissária que levava notícias e trazia as novas composições dos amigos.

Quando se encontraram para o show do centro estudantil, Gil e Gal vivam o auge da fase bicho grilo, percebido tanto nas cabeleiras quanto no repertório blues-rock. Ela vinha do explosivo disco/show Fatal – A todo vapor, uma eletroacústica costura de sons novos e antigos. E ele já havia lançado um álbum em inglês, que trazia a festiva Crazy pop rock, e começava a gravar um segundo, que acabou sendo abandonado (e perdido nos arquivos da gravadora) com a notícia de que o retorno para o Brasil estava liberado.

O encontro londrino aconteceu quase dois meses antes desse retorno. Nas 19 músicas que apresentaram naquela noite, o clima que transparece é de absoluta comunhão. Acompanhados por Bruce Henry (baixo), Tutty Moreno (bateria) e Chiquinho Azevedo (percussão), eles esticam cada música até o ponto mais tenso em longos improvisos e viagens sonoras. Para se ter noção da viagem, apenas três faixas têm menos de cinco minutos. “Vocês estão vendo esse clima assim de informalidade. É porque a gente está informal”, explica Gil, com sua verve característica, antes de puxar Dê um rolê.

universidadeNo disco um, parte mais preciosa do registro, os dois baianos dividem um repertório formado, basicamente, por canções do show Fatal. A tabelinha é digna dos grandes craques. Tem Gil fazendo contra-canto e botando seu violão majestoso a serviço dos agudos lancinantes de Gal em seu auge vocal. Isso vai da melancolia de Coração vagabundo a uma versão mais ritmada de Vapor barato. E o bate-bola segue em Como dois e dois, Acauã, Sai do sereno e outras. O disco dois é o momento solo de Gil, ainda antes de descobrir a guitarra, mas com o rock inglês correndo nas veias. Isso fica claro numa versão tresloucada e irreconhecível de Sgt. Pepper’s lonely hearts club band, dos Beatles, e na releitura enxuta de Up from the skies, de Hendrix. Prontas para entrarem no disco que ficou inédito, Brand new dream e One o’clock last morning, 20th april, 1970 apresentam um Gilberto Gil de ritmos quebrados e letras em inglês flutuando entre o blues e a psicodelia.

Gilberto Gil & Gal Costa Live in London capta um momento único da trajetória de dois dos maiores tesouros nacionais. Feita como uma despedida do Brasil, Aquele abraço agora ganha ares de felicitação pelo retorno do compositor que, aliás, começou a esboçar este samba numa visita a Dona Mariah, mãe de Gal. Ambos já admitiram que não lembram de nada daquela noite no centro estudantil. Que bom que ficaram as canções para contar a história.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

View All Articles