Histórias de exageros, drogas e orgias sexuais fazem parte da mitologia do rock há bastante tempo. Nos anos 1970, isso chegou ao máximo com figuras como Led Zeppelin ou Jimi Hendrix. Cássia Rejane Eller é de outra época, mas parece ter herdado a intensidade dos seus ídolos. Isso fica bem claro no documentário Cássia, de Paulo Henrique Fontenelle, que estreia hoje nos cinemas.

Filha de um paraquedista do exército e de uma dona de casa, a artista, definitivamente, não era adepta das regras militares ou caretices da vida doméstica. Para escoar o furacão que ela abrigava no peito, escolheu a música. Como uma Janis Joplin nacional, que preferia viver tudo a viver muito, a carioca teve apenas 39 anos de vida bem vividos. O suficiente para deixar uma marca indelével na música brasileira.

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Essa marca pode ser resumida num desejo de ser sincera com a própria arte. Uma das passagens mais curiosas mais curiosas do documentário conta que, depois do estouro de O segundo sol, a cantora costumava escapulir dos hotéis para cantar em churrascarias e barzinhos do interior. Fazendo questão que seu nome não fosse anunciado, ela se identificava como banda Come Água e tocava por qualquer trocado.

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E qual seria o objetivo dessa aventura marginal? Nada além de fazer música de verdade. Avessa figurinos pomposos ou discursos bem ensaiados, Cássia Eller se interessava apenas em mostrar sua arte. Tratando Edith Piaf e Nirvana com o mesmo respeito, a ela interessava somente a emoção tangível, sincera.

Vasculhando imagens inéditas da cantora, desde os tempos que ingressou no teatro pelas mãos de Oswaldo Montenegro, o documentário de duas horas traça um perfil costurado com muita sensibilidade. Nesse trajeto, é possível acompanhar as mudanças que a carreira de Cássia Eller sofreu. Sendo sincero, mesmo com toda a voz, todo o talento e todos os sucessos, a história discográfica da roqueira mais MPB que se conhece não corresponde ao seu talento.

Explico: em 11 anos de carreira, Cássia lançou apenas oito discos, dos quais três são ao vivo. Os dois primeiros trazem uma colagem mais esquizofrênica que mistura de sons da vanguarda paulistana, Hendrix e Legião Urbana. É daqui que saem os melhores lados B da intérprete. Erráticos e pouco conhecidos, os trabalhos de estreia venderam pouco mas lhe deram alguns fãs.

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No terceiro, que traz a versão original de Malandragem, primeiro hit de verdade da cantora, a produção de Guto Graça Melo busca limpar excessos, mas peca nos arranjos plastificados. Pelo menos, vendeu mais que os dois primeiros juntos. Só em Veneno antimonotonia, apenas com canções de Cazuza, Cássia Eller parece se aproximar do rock que gostava. Há uma sujeira bem dosada e releituras que pendem entre a pompa (Brasil) e a espontaneidade (Preciso dizer que te amo).  É bom, mas nem tanto.

É aqui que chega 1999 e o álbum Com você… Meu mundo ficaria completo. Comentando que o filho ainda pequeno reclamava que a mãe gritava demais, Cássia Eller resolve embicar sua música para uma MPB mais comportada. O disco faz sucesso com O segundo sol, Gatas extraordinárias e a chatinha Palavras ao vento. Claro que não dá pra acreditar que a mudança foi provocada pelo comentário de Chicão. Mas, seria mais complicado assumir que, apesar de ter respeito, a intérprete vendia pouco e precisava ampliar seu raio de ação. Pelo menos, a produção de Nando Reis buscou o melhor caminho entre a agressividade do rock e a suavidade da MPB.

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Comercialmente, o disco foi bem e abriu espaço para a gravação do antológico Acústico MTV, réquiem da intérprete, que faleceu em 29 de dezembro de 2001 no auge da fama. Seu último trabalho vendeu mais de um milhão de cópias, mas ela teve pouco de tempo de aproveitar as benesses deste sucesso. Com Cássia, morreu junto a grande voz nacional surgida depois de Elis Regina. Discorda? Pois quem seria, então?

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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