Nada vai chamar mais atenção no novo disco de Lucinha Menezes do que as presenças de Chico Buarque e Miúcha. Notícia que ganhou repercussão nacional, a presença dos irmãos cariocas é um luxo a mais no sexto lançamento da cearense de Itapipoca. A história já foi contada, mas vale ser repetida: Lucinha ficou próxima de Miúcha por volta de 2005, quando gravou A violeira, de Chico (e Tom Jobim), no álbum Lúcia Menezes. Desde então, além de garantir a presença do compositor em todos os próximos discos, ficou o desejo de chamar sua irmã para um possível.

Durante das gravações do álbum Lúcia, a artista resolveu, enfim, fazer o convite para Miúcha e, sem ter nada a perder, jogou uma incerta para que Chico Buarque viesse junto. Plantou verde, colheu maduro e realizou o sonho de ter um representante do Olimpo musical brasileiro em seu novo disco. Lucinha e Chico gravaram a melancólica Desencontro, joia lançada em 1968 no álbum Chico Buarque de Hollanda N°3. Embora já regravada por Clara Nunes, Claudette Soares e Toquinho, a faixa é uma daquelas que só os mais íntimos da obra do homem de olhos ardósia conhecem.

Foto: Alexandre Moreira

Para Miúcha, Lucinha reservou uma composição que une duas pontas de um mesmo Brasil. Melodia do acreano João Donato e letra do cearense Fausto Nilo, Sonho de Marinheiro é o oposto do dueto com Chico. Com ele, o samba-canção traz o clima de triste despedida. Com ela, uma marchinha canta as esperanças de um amor mítico, sonhador, idealizado. “E ao nascer do sol, escrever na areia versos de amor que ouvi da lua cheia”, diz a letra inspirada na guerra de Tróia, Ulisses e Padre Anchieta.

Há muito luxo em receber os dois filhos mais famosos de Sérgio Buarque num disco lançado pela Biscoito Fino. Mas Lúcia tem méritos próprios que vão além dos convidados. Lucinha Menezes aposta em uma fórmula certeira e incansável de trabalhar. Sem querer “inovar” ou “desconstruir”, ela somente seleciona belas letras e as valoriza em arranjos refinados. Como esse repertório costuma ser pensado a partir de memórias bem pessoais, a interpretação flui com facilidade.

Diante de tal proposta, nenhum produtor se adequaria melhor do que o cearense radicado no Sudeste José Milton. Sem regras ou limitações estéticas, eles somente selecionam canções (muitas delas à beira de cair no esquecimento) e adéquam ao canto sem vícios de Lucinha. Nesse momento, os arranjos luxuosos de Cristovão Bastos e João Lyra merecem destaque. Em Lúcia, o encontro desse time resulta num trabalho atemporal e de gosto refinado.

Como se fosse uma cantora da Era do Rádio, Lucinha Menezes abre o disco com Esperança Vã, um lamento de amor sofrido composto Fernando Lobo – que assina com o pseudônimo de Marcello Tupynambá. Remetendo aos melhores momentos de Elba Ramalho, Viola e Sanfona é uma inédita de João Lyra e Paulo César Pinheiro. A letra cascuda é debulhada com segurança, enquanto João Lyra (viola) e Adelson Viana (sanfona) duelam com seus instrumentos. O que vem daí em diante é um passeio sem cinto de segurança por paisagens fuloridas do Norte ao Sul maravilha.

Já bem conhecidas, tem Mudando de Conversa (Hermínio Bello de Carvalho/ Maurício Tapajós) e A Letra I (Luiz Gonzaga/ Zé Dantas). Enquanto Engoma a Calça (Ednardo/ Climério) ganha um arranjo à altura de sua importância, todo pontuado pela flauta certeira de Antonio Rocha. Devolve é um bom samba inédito de Angela Brandão que Lucinha faz apostando mais na afinação que na interpretação – o que também acontece em Sete Cantigas Para Voar, clássico de Vital Farias. Recado (Djalma Ferreira/ Luiz Antônio) inverte essa lógica numa interpretação sensível.

Foto: Pii

O último bloco do disco é mais acelerado e causa um estranhamento difícil de saber se é bom ou ruim. Pela coragem de emendar um samba-canção num forró cheio de punch, merece um ponto. Esse forró é Zé Piaba (Zé da Flauta), uma letra quilométrica que Lucinha dribla brincando com os tons. Em seguida vem a divertida Bem-Te-Viu, marcha carnavalesca de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, que faz lembrar Locomotiva na voz de Wanderléa.

Lúcia encerra com o forró A Fia de Chico Brito (Chico Anísio) e com Lourinha (Fred Falcão/ Arnoldo Medeiros), quando Lucinha desafia seus agudos. Com mais acertos que erros, Lúcia é feito com bom gosto, do repertório ao tratamento musical. A intérprete é segura do que quer, tem conhecimento musical e pode crescer à medida que explorar novos ambientes vocais. Com as bênçãos de Chico, Miúcha e outros bambas, ela pode seguir pescando pérolas perdidas no tempo da MPB. O Brasil agradece pelas lembranças.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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