Goste você ou não, Rita Lee faz parte da história da cultura pop brasileira. Mais ainda, ela é um importantíssimo capítulo da história musical e até não musical do País. Desde que integrou o trio paulista Os Mutantes, essa hoje senhora de 69 anos foi pioneira e protagonista em muitos assuntos. O rock é só um deles.

Esse primeiro parágrafo não é exagero. Basta conhecer a história da cantora e compositora, e interpretá-la sem preconceitos, para perceber que Rita Lee soube como poucos usar uma inteligência pra lá de refinada para criar produtos aparentemente simples e palatáveis, mas embutidos com muita coragem, pioneirismo e perspicácia.

Por isso saber que a roqueira, hoje aposentada, iria escrever uma autobiografia foi algo capaz de gerar muita celeuma. Rita Lee viveu momentos marcantes da história da MPB, como os festivais de música, a Tropicália, contracultura, o primeiro Rock In Rio, a explosão dos sintetizadores, a ditadura militar, etc, etc e etc.

No entanto, Uma Biografia, como foi batizada a publicação da Globo Livros, tangencia esses assuntos tornando todos eles bem menores do que de fato foram. Tudo soa como algo corriqueiro, como obra do acaso, sem muita importância. Talvez o encontro com Gilberto Gil e Caetano Veloso, e a criação do tropicalismo tenha merecido mais atenção, mas nem de longe traz uma visão nova, aprofundada ou além do que que já se sabe. Na verdade, o livro é um apanhado de “mais do mesmo” escritos de próprio punho.

Terminei de ler a autobiografia há poucos dias e posso garantir que dei boas risadas ao longo das poucas mais de 290 páginas. Sim, Rita Lee usa todo o seu bom humor, sarcasmo, um muito de cinismo para contar a própria história. Ou, melhor dizendo, aquilo que ela quer que seja a história oficial. Tudo que não é o que ela diz ou que jornalistas, críticos e historiadores disseram, inclusive, é tratado como mentira e não mais que isso.

Sendo um fã de longa data de Santa Rita de Sampa, não quis alimentar falsas expectativas para o livro, nem mesmo esperei sinceridade. Esperei mesmo o que recebi, um texto bem humorado, mas que iria deixar de lado o supra sumo, o ineditismo sobre a vida da maior estrela pop brasileira. Ela mesma faz questão de dizer, em vários momentos, que não é boa de datas e que algumas passagens podem não estar de acordo com o calendário. Para compensar essas ausência de memória, ela convidou o jornalista Guilherme Samora. Ele assume o papel de Phanton, um fantasminha camarada que aparece quando quer para ajustar alguma informação e elevar a autoestima da autora.

Sim, por que Rita Lee dedica boa parte de Uma Autobiografia a fazer de conta que não sabe da própria importância. Brinca com a própria voz (que é ótima. Afinada, original e ideal para o tipo de rock carnavalesco que ela mesmo moldou) e fala mais sobre seus bichos de estimação do que, por exemplo, sobre a vida ao lado dos geniais Mutantes. E, pessoas como eu, que valorizam a história da banda que revolucionou o rock que se faz no mundo, acabam sendo tratados como mero saudosistas.

Não é bem por aí, cara Rita. A saída da vocalista, em meio a uma decisão isolada e que ela só soube ao chegar para um ensaio, foi algo digno das piores sacanagens e injustiças do mundo da música. No entanto, passados tantos anos, a cantora ainda não se sentiu à vontade para exorcizar o próprio trauma e analisar o legado da banda que ainda chama a atenção de novos públicos, mesmo estando anos luz do seu auge criativo.

Nem mesmo a frutífera parceria com Roberto de Carvalho, que rendeu três filhos e pencas de sucessos, tem uma autoanálise aprofundada. E os críticos de música, esses malditos humanos que insistem em vasculhar documentos que comprovem suas verdade, são execrados sempre que possível. Ritinha preferiu um relato baseado numa memória que ela mesma assume como falha para escrever aquilo que ela acha que é sua biografia definitiva.

A propósito, a alardeada polêmica do show em Sergipe – que terminou com a cantora levada à delegacia por criticar uma ação policial que buscava usuários de drogas – Rita Lee tratou da seguinte forma: reclamou que ninguém quis ouvir sua versão, escreveu no livro, mas publicou com tudo riscado por que não está autorizada a falar sobre o assunto. Claro que existe uma boa dose de sensacionalismo nessa atitude. Sobre ninguém ouvir sua versão, ela esquece que conseguir uma entrevista com a Rainha do Rock não é fácil – sempre por email e com respostas muitas vezes evasivas. E, claro, ninguém duvida que logo virá uma versão atualizada de Rita Lee, Uma Autobiografia, dessa vez com sua versão da história liberada.

A personagem colorida, bem humorada e extremamente criativa criada por Rita Lee para subir aos palcos é uma mistura de Dom Quixote com Chapolim Colorado, Mick Jagger, Carlitos e mais alguns ícones da diversão inteligente. No entanto, em muitos momentos ela usa esse personagem para fugir daquilo que dói. Até mesmo o episódio de uma agressão sexual sofrida por ela na infância é tratado em poucas linhas e nenhuma que diga as consequências desse trauma. Pode ser até que ela acredite tanto nesse personagem que não sabe mais se separar dele para viver o mundo real.

A quilômetros de distância do ideal, Rita Lee, Uma Autobiografia é uma leitura divertida. As gírias, figuras de linguagem, referências e muitas fotografias vão garantir momentos de leveza e até convencer alguns fãs de que têm em mãos uma história importante. Sim, a história de Rita Lee é muita importante, mas ainda não foi contada como deveria.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

View All Articles