Por Camila Holanda (camilaholanda@opovo.com.br)

Elza Soares é uma força da natureza. Aos 87 anos, ela vive um momento bonito e importante na carreira. Lançou na sexta-feira, 18, seu segundo álbum totalmente formado por músicas inéditas (o primeiro foi Mulher do Fim do Mundo, de 2015). Deus é Mulher chegou devastando violências. Elza é um ser político. Sua voz rouca ecoa a tristeza e a luta que nós enfrentamos diariamente.

Vinda do “planeta fome”, como ela mesma definiu décadas atrás, antes de superar a pobreza, casou ainda adolescente e viu morrer filhos e marido. Só depois disto, Elza da Conceição Soares ressurgiu, virou artista. Em sua trajetória, sofreu ainda o gosto azedo da violência doméstica, quando casada com Mané Garrincha.

E, agora, a cantora exorciza as agruras vividas, sentidas e observadas por ela. E as nossas. O movimento, contudo, sempre esteve presente no discurso de Elza, que, em 1998, consagrou os versos de A Carne, composição de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti. O tom político – principalmente contra a opressão vivida por mulheres, gays e negros – se fortaleceu em 2015, quando no lançamento de Mulher do Fim do Mundo. O álbum demarcou um novo momento na carreira de Elza, rendendo prêmios, como o Grammy Latino, na categoria Melhor Álbum de MPB. O periódico The New York Times chegou a eleger o disco como um dos dez melhores do ano, em lista onde figuraram nomes como Beyoncé e David Bowie.

Deus é Mulher foi gravado entre os estúdios Red Bull (São Paulo) e Tambor (Rio de Janeiro). A produção tem o mesmo núcleo duro de seu antecessor, mas foi ampliado. Neste álbum, Guilherme Kastrup é o produtor musical, trabalhando ao lado de Kiko Dinucci, Rômulo Fróes, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral, que, juntos, formam a banda Passo Torto.

Mesmo produzido pelo mesmo grupo, o 33º álbum de Elza não é uma continuação do Mulher do Fim do Mundo, por mais que haja assuntos afins. A aura do disco é outra. As guitarras, os arranjos, as percussões, o tom elétrico-frenético incisivo (ora com um viés punk, ora puxando para o rap de Edgard, ora dando à luz um samba). Elza não se repete. Cada trabalho é um novo universo.

Após críticas sobre Mulher do Fim do Mundo não ter tido a presença forte de mulheres, o novo projeto chega rompendo com isto. Mariá Portugal (bateria, percussão e MPC) e Maria Beraldo (clarinete e clarone) entram para a trupe, enquanto grupo o feminino afro Ilú Obá de Min empresta sua percussão nas faixas Banho (Tulipa Ruiz) e Dentro de Cada Um (Pedro Loureiro e Luciano Mello).

O disco começa com a faixa O Que Se Cala, de Douglas Germano, compositor de Maria da Vila Matilde, samba que marcou o trabalho anterior. “O Meu país é meu lugar de fala”, brada Elza, enquanto anuncia que sua voz quer mesmo escancarar opressões. Na sequência, um funk com nuances de punk de Kiko Dinucci e Edgar toma forma em Exú nas Escolas, denunciando miséria, problemas na educação e desvio de verba das merendas escolares.

As músicas percorrem os mais diversos temas, sempre encharcados pelo forte viés político. A faixa mais impactante do álbum é a penúltima. Dentro de Cada Um fala da fortaleza da mulher e do gay violentados e silenciados das mais diversas formas. É renascimento. “A mulher de dentro de cada um não quer mais incenso/ A mulher de dentro de mim já cansou desse tempo/ A mulher de dentro da jaula prendeu seu carrasco”. Fechando o álbum, está Deus Há de Ser (Pedro Luís), que empresta verso para o título do disco: “Deus é Mãe/ E todas as ciências femininas”. Sorte a nossa de termos Elza.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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