Por Victor Hugo Santiago (músico)

Belchior diz que “o tango lhe cai bem melhor que o blues”, eu acredito e endosso seus versos, pois no tango há uma aura sonora bastante envolvente e nostálgica. Uma nostalgia tecida por acordes (harmonia) tensionados entre as notas, fazendo com que tenhamos essa sensação aprazível. Já diria um dos maiores cantores do gênero, Carlos Gardel: “É preciso senti-lo. Há que se viver o seu espírito”. A leitura é exatamente por esse viés.

Nesse universo intrigante que cerca o maior patrimônio cultural dos nossos “hermanos”, o maior compositor de tango, Astor Piazzola, deixou um legado atemporal que aqui nesse trabalho é revisitado com requinte pelo Trio Harmonitango, dedicando-se inteiramente a obra desse grande músico argentino. O Trio é formado por versáteis músicos cariocas com uma vasta experiência “camerística”. São eles: José Staneck, gaitista tido como o principal nome da harmônica no Brasil, atuando frequentemente como solista de diversas orquestras sinfônicas nacionais e internacionais; Ricardo Santoro (violoncelo), membro da Orquestra Sinfônica Brasileira, da Orquestra Sinfônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro e de grupos camerísticos; a precisão nas teclas de Sheila Zagury (piano), que além de exímia musicista é também arranjadora,  realizando diversos trabalhos tanto na música clássica quanto popular. Com essa formação, o grupo criado em 2010, já se apresentou em várias salas de concerto no Brasil e tem como principal objetivo a divulgação da música de Piazzolla e de compositores brasileiros. O grupo elabora arranjos específicos para esta inusitada combinação instrumental.

O início da trajetória fonográfica do trio é marcado com o álbum Harmonitango. É importante ressaltar que o disco encerra o trabalho do compositor carioca Sergio Roberto de Oliveira (1970 – 2017) para o selo A Casa Discos, do qual ele foi diretor. Sérgio dedicou grande parte da sua carreira à música clássica brasileira contemporânea. Esse fonograma foi o último feito na gravadora sob direção deste produtor, que pouco tempo depois de concluir o trabalho, faleceu, em 19 de julho de 2017, por conta de um câncer.

Segundo o trio, todo o trabalho de produção deste disco partiu de uma busca por diferentes sonoridades e novas formas de expressão. O produtor além de assinar o disco, deixa também no encarte um pouco de suas palavras. Ele diz: “Astor Piazzolla é figura múltipla, complexa e apaixonante… pois é justamente a tradução desse Piazzolla múltiplo e complexo que nos encanta neste álbum do Harmonitango.”

Uma curiosidade relacionada a esse disco é que, dentre as múltiplas influências, a música de Piazzolla também “bebeu da fonte” brasileira, sobretudo da música do nosso Antônio Carlos Jobim. No início da carreira, o portenho teve aulas com a legendária Nadia Boulanger (França), mestre de alguns dos maiores criadores do século XX, como Igor Stravinsky, além de nomes fundamentais da música popular moderna, como Egberto Gismonti e Quincy Jones. Boulanger foi, inclusive, considerada como a mentora no processo de decisão para Quincy desistir da carreira erudita e mergulhar de vez no tango, ritmo que tanto o fascinava.

Já no álbum do Harmonitango, há um mergulho muito evidente nas influências musicais do compositor e bandoneonista argentino. Instrumentista virtuoso, vindo, inicialmente, do universo erudito, migrou para o tango permanecendo e se perpetuando neste gênero do qual se tornou uma referência. Astor Piazzolla (1921 – 1992) se tornou um expoente máximo justamente por revolucionar os princípios da linha melódica (cânones) ao executar e compor tangos com influência jazzísticas e da música erudita. A produção por Oliveira realça o Harmonitango e mostra com plenitude a real influência da música clássica na obra de Piazzolla.

Constam no repertório grandes clássicos do portenho, tais como Adiós Nonino, dedicada ao pai que Piazzolla perdera em 1959, e Libertango, tema consagrado pelas interpretações do compositor e das várias releituras pelo mundo afora. Tem ainda a faixa Retrato de Milton, tema dedicado ao brasileiro Milton Nascimento, compositor com quem o argentino estabeleceu novos parâmetros em uma obra singular. O tributo traz um recorte minucioso e abrangente de Piazzolla sob a concepção do Harmonitango. O CD é composto por 11 músicas que ao longo de pouco mais de uma hora nos fazem viajar para Buenos Aires. Regravaram também uma raridade, La Muerte del Ángel, primeira faixa do álbum que já mostra a que veio.

Na contracapa do encarte, Paulo Jobim elogia o trabalho do trio: “Este CD é uma joia. O trio respira junto, vibra na pausa com uníssonos e vozes perfeitas e com arranjos muito fiéis aos originais de Piazzolla”. Esse trabalho teve grande receptividade do público e da crítica especializada, justamente por seu objeto central ter sido a divulgação da música de Piazzolla, grande compositor mundial e com legítimos arranjos desenvolvidos e executados pelos músicos.

Bom deleite a todos. Salve os sons!

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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