Houve um tempo em que a canção era bastante popular no Brasil. Esse gênero marcado pela combinação perfeita entre letra e poesia, em que os elementos coexistem sem disputar a atenção do ouvinte, fez história no início do século XX e foi marcado pela força de grandes intérpretes como Nelson Gonçalves, Elizeth Cardoso, Elis Regina, Cauby Peixoto e Dalva de Oliveira. Aos poucos, a canção foi perdendo espaço para outros estilos, propostas e ideias. Mas nunca deixou de existir quem a valorizasse.

Ayrton Montarroyos, 23 anos, pernambucano, é um deles. Desde que foi revelado ao grande público, em 2015, no programa The Voice, o cantor deixou claro quer não tinha intensão de seguir as regras mais fáceis do mercado. “Eu coloquei uma norma: eu vou cantar só aquilo que eu quiser e da forma que eu quiser. Eu cheguei ao final (do programa) cantando o que acredito e com voto do público. Eu entendi que meu compromisso era gigante, que minha responsabilidade era enorme”, reafirma o músico que segue sua missão com um segundo disco, Um Mergulho no Nada.

Trabalho produzido por Thiago Marques Luiz e dividido com o violonista (7 cordas) Edmilson Capelupi, o disco traz 10 canções brasileiras que misturam diferentes gerações de compositores brasileiros, mas parecem se unir no canto afinado, bem medido e imponente de Montarroyos. Vem de Dorival Caymmi (Sodade matadeira) e Jacob do Bandolim (com Hermínio Bello de Carvalho, Doce de Coco), passa por Chico Buarque (Mar e Lua) e Djavan (Açaí), até chegar em Junio Barreto, Bactéria e Lirinha (Jabitaca). “O que fala mais alto (no disco) é a canção enquanto gênero. A canção passa por um momento delicado por que a não existência do intérprete dificulta e ainda tem uma indústria massacrada pela ignorância. Isso tudo coloca a canção num local perigoso de quase desaparecimento”, critica.

Essa vontade de mergulhar na canção brasileira acompanha Ayrton Montarroyos desde muito cedo, quando tomou gosto pelo canto. Antes de ir para a TV, gravou participações em tributos a Luiz Gonzaga e Herivelto Martins. No The Voice, fez Lulu Santos e Claudia Leitte virarem suas cadeiras para a interpretação de Força estranha. No disco de estreia, de 2017, no lugar de regravar o que já tinha chamado a atenção na Globo, foi em busca de canções que sublinhassem tudo o que ele tinha pra dizer sobre a música popular brasileira. Agora, em Mergulho no Nada, gravado ao vivo no Teatro Itália, em São Paulo, ele segue em frente, em busca mais canções. A única exceção fica para Cálice (Chico Buarque), que ele já havia apresentado no The Voice.

“Comecei a cantar porque gostava e focava na coisa de ser intérprete. É um conceito em extinção, pouco entendido no meio popular e pelo público”, explica Ayrton (primo do lendário trompetista Márcio Montarroyos). “Eu poderia fazer uma lista enorme de pessoas que são bons intérpretes, mas que não são bons compositores. O que acontece é que não tenho um talento natural como teve Cartola, que já saiu compondo. Essa minha intuição é sempre voltada para a coisa do canto. É para esse deus que eu sirvo e tento cada vez melhorar, como faz qualquer profissional”.

Nesse trabalho de interpretação, Ayrton recria canções à sua maneira. Assim como ele transformou, por exemplo, no primeiro disco, o samba Alto lá num tango cheio de cordas a acordeom, agora ele abre Mergulho no Nada com Pé Na estrada, um frevo arretado que se transforma num samba canção com cara de Nelson Cavaquinho. “Eu sinto que eu estou um pouco em extinção, por ir na contramão da gritalhada. É tudo muito explícito. Não me interessa isso não. Me interessa o desconhecido. A surpresa está em quando as pessoas ouvem e se surpreendem”.

Raízes do canto:
Cauby Peixoto – dos maiores intérpretes brasileiros, Cauby dedicou mais de 60 anos de carreira à interpretação de canções nacionais e internacionais. Contam que Ayrton imitando o niteroiense é de impressionar.

João Gilberto – Assim como o pai da bossa nova, Ayrton é adepto do canto contido, bem colocado, sem exagero. “Quando desenvolvi a capacidade de ouvir João, um mundo novo se abriu. Eu vi o mundo que ele criou para que ele pudesse existir. Cantar como Whitney Houston é mais fácil que cantar como João Gilberto”.

Claudette Soares – A “princesinha do baião” é também uma das grandes intérpretes da bossa nova. Aos 81 anos, segue cada vez mais refinada, e tem um show em parceria com Ayrton. “A gente toma porres homéricos. É uma amizade linda, uma mulher que me ensina muito”, diz o cantor.

Elizeth Cardoso – Das maiores vozes brasileiras, Elizeth sabia valorizar as letras das canções. Em 1991, ela também gravou um disco de voz e violão, Todo o Sentimento, com Raphael Rabello. Assim como Ayrton, ela também gravou Doce de Coco.

Sammy Davis Jr. – A música norte-americana também tem seus grandes intérpretes e cancionistas. Da mesma linha de Sinatra e Dean Martin, Sammy Davis dividiu com o violonista brasileiro Laurindo de Almeida, em 1966, um belíssimo trabalho com standards como The shadow of your smile, Speak Low e Ev’ry Time we say Goodbye.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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